Créditos: Drazen Zigic
Créditos: Drazen Zigic

Não tem sido dos aspetos mais debatidos, mas por isso mesmo sinto o dever de fazer este alerta, a propósito de uma das medidas constantes da proposta recentemente apresentada pelo Governo para a lei laboral: cortar para metade as horas obrigatórias de formação dos trabalhadores em pequenas e médias empresas.

Imaginem bem esta cena: Fernanda, operária têxtil em Guimarães, fez horas extra para pagar um curso de robótica. Sonha sair da linha de produção e ser técnica de manutenção. Ela propôs à empresa essa ou outra formação qualificante semelhante, mas o patrão nunca a formou — a empresa poupou o quê? 500, ou 1000 euros num ano? Pois, mas ignorou as 40 horas de formação obrigatória que a lei prevê, e ninguém o incomodou por isso, anos a fio. Agora, o Governo quer que empresas como esta reduzam ainda mais a formação. Fernanda vê anúncios: "Precisa-se trabalhador/a qualificado para indústria 4.0". E pergunta: "E eu, que estou aqui há 10 anos, não mereço ser qualificada?"

Mas não é só. Raquel, 42 anos, trabalha há 15 anos numa confeção têxtil perto da Fernanda, de quem é vizinha. Uma máquina de corte laser chegou há dois anos, mas ninguém a formou para trabalhar com ela. Agora, a empresa contratou um técnico por 1.800€/mês. Raquel continua a cortar tecido manualmente, a ganhar 820€. Quando pergunta sobre formação, o patrão responde: "O Governo vai acabar com isso, já não vale a pena investir."

Este é um retrato do país onde o Governo quer importar talento mas despreza os seus trabalhadores! Entretanto, 85% das fábricas têxteis não formam trabalhadores para novas tecnologias (dados da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal). Um operador de máquinas têxteis automatizadas ganha 1.300€, contra os 750€ do trabalho manual (IEFP). Em consequência, Portugal importa 30% dos técnicos têxteis qualificados de países como Marrocos, enquanto trabalhadores como a Fernanda e a Raquel não veem sequer respeitado o seu direito a formação qualificante.

Ah pois, o têxtil! Mas está bem acompanhado. Na hotelaria e turismo, espalha-se wi-fi por todo o recanto, mas não se formam os trabalhadores.

João Carlos, de 28 anos, é rececionista num hotel de Lisboa. Candidatou-se 3 vezes para um curso de gestão hoteleira, pago pelo empregador. A resposta foi sempre: "Não há orçamento." Já este ano, o hotel contratou uma pessoa com diploma em Turismo. João Carlos, com 6 anos de experiência, mantém-se rente ao salário mínimo.

Só 12% dos trabalhadores da hotelaria recebem formação além do básico, segundo o Turismo de Portugal. O custo da rotatividade é ignorado: formar um rececionista custa 500€, mas substituí-lo custa 3.000€ (estudo da AHRESP).A suprema ironia é a de o Algarve precisar de 2.000 cozinheiros qualificados, quando os que já estão empregados nunca tiveram um curso de segurança alimentar.

Podia continuar o desfile de casos. Nos call centres, 70% dos trabalhadores saem em 2 anos e 80% das operadoras pagam 900€ por mês, apesar dos muitos milhões de receitas. Segundo dados sindicais, são zero as horas de formação em 89% dos call centres. Na agricultura, onde já se usam drones, apenas 3% dos trabalhadores recebem formação em tecnologias verdes (dados do INE) e 90% dos acidentes com pesticidas ocorrem por falta de formação, segundo a Autoridade para as Condições de Trabalho. Sabe-se, todavia, que os agricultores que investiram em formação aumentaram a produtividade em 35% (segundo a Confederação dos Agricultores de Portugal).

Num país em que mais de 90% das empresas são PMEs, a esmagadora maioria (72%) não cumpre a obrigação legal de 40 horas anuais de formação. Agora, em vez de incentivar a formação, a proposta recentemente apresentada reduz para metade as horas de formação obrigatória da maioria das empresas, premiando assim incúria e o desrespeito pela lei. O mesmo Governo que propõe reduzir as obrigações de formação das empresas, propõe-se atrair imigrantes qualificados, como se a solução para a falta de mão-de-obra fosse importar talento, em vez de o cultivar internamente. Será preciso evidenciar a contradição, ou explicar o disparate?

O Governo que, na apresentação da proposta "Trabalho XXI" anunciou com pompa uma reforma do Código do Trabalho que é “ambiciosa, profunda e modernizante” é o mesmo que corta a formação em setores como o têxtil, onde 60% dos trabalhadores nem sabem usar um Excel. A Alemanha, por exemplo, gasta 2,7% do PIB em formação profissional. Portugal? 0,5% .

A redução da formação não é neutra. Tem um custo económico e social calculável. A escolha do Governo elimina horas de formação obrigatória, poupando às empresas cerca de 50 milhões de €/ano (estimativa a partir dos custos médios por trabalhador). Mas esta "economia" é enganadora nas contas que faz. Na realidade, trabalhadores não qualificados geram uma produtividade 20% mais baixa (dados aludidos pela OCDE), a maior rotatividade eleva custos de recrutamento e formação inicial e de integração na equipa e cultura da empresa. Para os trabalhadores, a falta de formação trava progressões salariais e condena à estagnação nas carreiras, aprofundando desigualdades, num mercado já baseado em salários baixos Com esta política, não se estagna a fuga de cérebros, mas aprofunda-se um evidente plano e projeto de sociedade, que contradiz a própria retórica promocional do Governo.

A UGT já deu um rotundo não à proposta do Governo e a CGTP já a classificou como um assalto aos direitos dos trabalhadores que é preciso derrotar. Não basta. É preciso afirmar as propostas necessárias, positivas, capazes de gerar progresso. Por exemplo, passando das 40h atuais de formação, não para as 20h propostas , mas para um mínimo de 60h. Reforçando a fiscalização pela ACT, com multas pesadas para incumpridores e financiamento público adequado para quem invista na formação, reforçando o papel do IEFP e da negociação coletiva, que deve ligar a formação certificada a impactos nas carreiras.

A redução da formação não é "modernização", é a consagração de um modelo de desenvolvimento falhado, que privilegia o lucro imediato das empresas em detrimento da qualificação e valorização do trabalho, da responsabilidade social das empresas e da justiça social. É, pois, justo exigir ao Governo que retire esta proposta e priorize, de facto, um "Trabalho XXI" que dignifique os trabalhadores portugueses. Portugal precisa de mais.

Texto publicado originalmente no jornal Público, 11 de agosto de 2025