Autor: Adriano Miranda/ Público
Autor: Adriano Miranda/ Público

Em matéria de despedimento, o princípio geral consagrado no atual Código do Trabalho continua a ser aquele que foi acolhido no nosso país após a Revolução de Abril e a Constituição da República: ao declarar o despedimento ilícito, o tribunal priva este último do seu efeito extintivo da relação laboral, pelo que, tendencialmente, tudo se vai passar como se o despedimento jamais tivesse sido proferido pela entidade empregadora. E, em conformidade com esta lógica de fundo, o trabalhador tem o direito de retomar a sua atividade profissional ao abrigo de um contrato de trabalho que, afinal, ao invés daquilo que o empregador pretendia, não foi dissolvido pelo despedimento inválido. A consagração de uma tutela de tipo reintegratório ou restitutório entende se e é a única que, ao menos como solução regra, se mostra compatível com a garantia da segurança no emprego, consagrada no art. 53.º da Constituição. Qualquer outro sistema, em que a tutela da estabilidade do emprego fosse como que amolecida, assentando em mecanismos puramente indemnizatórios – sistema do despedimento pago –, ficaria, decerto, aquém das exigências constitucionais. Como lapidarmente escrevem Gomes Canotilho e Jorge Leite, “se o ato que extingue o contrato [o despedimento] vem, afinal, a revelar se anti jurídico, a única reação adequada do ordenamento jurídico compatível com o sistema da estabilidade é a de privar aquele ato da sua consequência normal, determinando a sua invalidade e consequente subsistência do vínculo contratual. A monetarização do despedimento como alternativa à reintegração permitiria, afinal, à entidade empregadora aquilo que a CRP quer, manifestamente, proibir – desembaraçar se do trabalhador apesar de não haver causa legítima de despedimento”.

O direito à reintegração do trabalhador ilicitamente despedido – de qualquer trabalhador ilicitamente despedido – constituiu um dos eixos do nosso ordenamento jurídico laboral subsequente à Revolução de Abril. Mas, em 2003, o Código do Trabalho veio introduzir neste ponto novidades significativas, passando a prever um leque de possíveis exceções à tutela reintegratória – numa orientação que, diga se, não veio a ser infletida pelo atual Código do Trabalho, de 2009. Com efeito, tendo o trabalhador optado pela reintegração na empresa, em determinadas hipóteses a lei passou a admitir que o empregador viesse opor se a tal reintegração, requerendo ao tribunal que a excluísse, “com fundamento em factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa”. Ainda assim, o atual Código revela uma razoável prudência nesta matéria, dado que a referida faculdade de oposição patronal à reintegração só existe relativamente a certos trabalhadores e em certas empresas. Com efeito, nos termos do art. 392.º, o universo subjetivo das exceções à regra da reintegração compreende, apenas, dois grupos de casos: o dos trabalhadores que laboram em microempresas (as que empregam menos de 10 trabalhadores) e o dos trabalhadores que ocupam cargos de administração ou de direção. Nas restantes hipóteses – isto é, perante trabalhadores que não exerçam funções dirigentes e que laborem em pequenas, médias ou grandes empresas –, a faculdade de oposição patronal à reintegração encontra se, ab initio, excluída. Naqueles limitados casos apontados, porém, em que serão mais estreitos os laços pessoais entre as partes e em que a relação juslaboral poderá apresentar uma nota fiduciária, à opção reintegratória tomada pelo trabalhador poderá o empregador retorquir manifestando a sua oposição à mesma e requerendo ao tribunal que exclua a reintegração.

Ora, o que consta do Anteprojeto apresentado pelo governo, nesta matéria? Muito simples: transforma-se a exceção em regra e passa a prever-se, de forma generalizada, que, sendo o despedimento ilícito e desejando o trabalhador ilicitamente despedido retomar o seu posto de trabalho, o empregador possa opor-se, solicitando ao tribunal que exclua a reintegração – isto para todas as empresas, micro ou grandes, e para todos os trabalhadores, dirigentes ou indiferenciados. Vale dizer, o trabalhador é ilegalmente despedido, vê o seu direito fundamental a não ser despedido sem justa causa a ser violado pelo empregador, manifesta a sua vontade de retomar o trabalho… e, ainda assim, para prevenir eventuais perturbações no funcionamento da empresa, o seu empregador, autor do despedimento ilegal, pode lograr o seu principal intento – expulsar, de vez, o trabalhador da empresa, privando-o do emprego.

Não sei em que Constituição se funda este Anteprojeto governamental. Não, decerto, na Constituição da República Portuguesa, a qual garante a segurança no emprego e proíbe, sem tergiversar, os despedimentos sem justa causa. Esta proibição constitucional implica a nulidade dos atos de despedimento sem justa causa e o direito do trabalhador a manter o seu posto de trabalho e a ser nele reintegrado. O art. 392.º do Anteprojeto é mais um a revelar uma inegável obsessão governativa em ignorar ou degradar os direitos fundamentais dos trabalhadores e em acautelar e promover o superior interesse das empresas e dos seus titulares. Seria uma opção política legítima de uma maioria parlamentar de direita, não fosse o pequeno senão de ser uma opção flagrantemente inconstitucional!

Para quê isto? Para reforçar os poderes patronais, numa relação já de si desigual e assimétrica? Para veicular a ideia de que o despedimento sem justa causa, ainda que proibido, pode fazer-se? Para vincar que manda quem pode, a troco de alguns tostões?

Neste campo do despedimento ilícito, a nossa ordem jurídica não deve ser mole ou condescendente, antes deve ser rigorosa e vigorosa. Se o trabalhador for ilegalmente expulso da empresa onde exerce a sua atividade profissional e se o tribunal reconhecer a invalidade da decisão patronal, o que se pede às leis do trabalho é que permitam que o trabalhador, se assim o desejar, regresse à empresa da qual foi ilicitamente afastado e retome o exercício da sua atividade. Também por esta via se defende a dignidade de quem trabalha – no caso, a dignidade de quem, estando a trabalhar, é alvo de uma decisão de despedimento. Decisão esta ilegítima, que, todavia, o exclui do ambiente de trabalho, o priva do seu emprego e do correspondente salário, o impede de continuar a exercer a sua atividade profissional. E pretendem agora que o trabalhador vitimado por esse despedimento ilícito não tenha o direito potestativo de voltar? Qualquer que seja a dimensão da empresa em causa e qualquer que seja a função por ele exercida?

Em suma, um simulacro de segurança no emprego, a segurança no emprego a ser sacrificada no altar das conveniências empresariais. Uma solução que traduz uma opção ideológica de quem governa, legítima em si mesma, mas incompatível com a pauta de valores consagrada na nossa Constituição. E, por isso, juridicamente inadmissível.

Texto publicado originalmente no jornal Público, 13 de agosto de 2025