
A Constituição consagra, no seu art. 53.º, a garantia da segurança no emprego, com a correlativa proibição dos despedimentos sem justa causa. Aquela é uma garantia de primeira linha, sujeita ao regime privilegiado dos direitos, liberdades e garantias, da qual resulta, inequivocamente, que, em matéria laboral, a regra é – deve ser, não pode deixar de ser – a do contrato por tempo indeterminado, isto é, sem termo. Para a nossa ordem jurídica, o contrato a prazo só pode ser admitido em situações excecionais, em que exista uma necessidade de trabalho meramente temporária na empresa, a satisfazer, justamente, através da contratação a prazo de trabalhadores (substituição de trabalhador doente, atividade sazonal, acréscimo excecional de atividade da empresa, etc.).
Ora, a Agenda Trabalho XXI propõe-se romper com o caráter desviante assumido, entre nós, pelo contrato a prazo, sobretudo quando vem estabelecer, em moldes inovadores, que poderá vir a ser celebrado contrato de trabalho a termo certo, com duração máxima de dois anos, sempre que se trate da «contratação de trabalhador que nunca tenha prestado atividade ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado» (nova redação proposta para o art. 140.º, n.º 4, al. b). Ou seja, segundo esta proposta, a circunstância de um trabalhador nunca antes ter sido titular de um contrato de trabalho standard, sem termo, legitima que se perpetue a precariedade laboral desse mesmo trabalhador, que poderá ir sendo contratado, sucessivamente, por diversos empregadores, sempre a prazo, mesmo que para satisfazer necessidades de trabalho permanentes das empresas em que for laborando. Contanto que nenhum empregador o macule, contratando-o sem termo, este trabalhador transforma-se num permanente candidato a ser contratado a prazo, com a descarada conivência da lei. Pode começar a trabalhar aos 20 anos, através de um contrato a prazo, e pode terminar a sua carreira (?) já sexagenário, tendo sido sempre e só contratado a prazo, por uma ou duas dúzias de empregadores, ao longo de décadas. É uma nova categoria criada pela Agenda Trabalho XXI, esta de um trabalhador sempre casto e virgem, pronto a ser recontratado a prazo, mesmo depois de ter tido antes relações laborais com uma ou duas dúzias de empregadores! Ponto é, claro, que nenhum lhe retire essa virgindade, mantendo com ele uma relação contratual por tempo indeterminado.
Dir-me-ão que agora é assim, que no século XXI o modelo deve ser o da contratação a prazo, precária por natureza. Dir-me-ão, também, que a Agenda Trabalho XXI contém outras regras que compensam esta situação de constante precariedade laboral. Esta reforma, afinal, concede novos direitos ao trabalhador. Por exemplo, o direito a comprar dias adicionais de férias – em boa verdade, o direito a faltar justificadamente em antecipação ou prolongamento do período de férias, até ao máximo de dois dias por ano, faltas essas que, entretanto, implicam a perda da retribuição correspondente a esses dias. Mais importante do que isto: a nova lei propõe-se fazer o que nunca antes foi feito pela lei do trabalho em Portugal, atribuindo expressamente ao trabalhador um novo e magnífico direito – o direito a renunciar aos créditos de que seja titular perante o empregador.
O empregador não pagou a retribuição mensal devida, ou parte dela? O empregador não pagou o subsídio de férias ou de Natal? O empregador não pagou a retribuição devida pela prestação de trabalho suplementar ou pela isenção de horário de trabalho? A lei atual, num afloramento de criticável rigidez, tem a obtusa ideia de tentar que o empregador pague tarde o que devia ter pago antes, considerando nula qualquer declaração de renúncia aos seus direitos assinada pelo trabalhador, amiúde quando o contrato de trabalho se extingue. A lei atual entende, estranhamente, que a relação laboral é uma relação de poder, em que o trabalhador-credor se encontra juridicamente subordinado ao empregador-devedor, dependendo economicamente dos rendimentos do trabalho. Como, ademais, muitos dos créditos dos trabalhadores são também expressão de um direito fundamental – desde logo do direito fundamental à retribuição –, a lei atual considera que aquelas declarações, assinadas pelos trabalhadores numa situação de parco esclarecimento sobre os seus direitos e de acentuada debilidade perante o empregador (“se eu não assinar, o empregador nem sequer me vai pagar o salário em falta, do último mês de trabalho”…), não são expressão de uma real autonomia da vontade.
Tudo mudará, para muito melhor, com a Agenda Trabalho XXI. O trabalhador vai passar a poder dispor amplamente dos seus direitos de crédito, inclusive renunciando aos mesmos em proveito do seu empregador. Para tal, basta que o declare expressamente, por escrito, com reconhecimento notarial (nova redação proposta para o art. 337.º, n.º 3). Maravilha! Pensará o empregador: para quê pagar, se tenho forma de (e força para) pressionar o meu credor a renunciar aos seus direitos? Assim é muito mais flexível, cómodo e barato! Simplex!
É isto, sem tirar nem pôr, aquilo que o governo propõe aos trabalhadores, na sua autodenominada reforma laboral (ou liberal?) Trabalho XXI. Contrato por tempo indeterminado? Pagar, na íntegra, aquilo que é devido aos trabalhadores? Não, sejamos flexíveis. Bom mesmo é usar e abusar da contratação precária, criando uma interminável e crescente fileira de trabalhadores aprazáveis. E o melhor será conter custos, não pagar tudo o que se deve, porque afinal o trabalhador talvez esteja disposto a abdicar de uma parte dos seus créditos para garantir que alguma coisa recebe – afinal, “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”…
Trabalhadores precários por definição e condição, trabalhadores sempre aprazáveis. Trabalhadores, decerto, dispostos a abdicar, a renunciar validamente aos seus direitos – ainda que muitos dos seus direitos lhes sejam concedidos por normas imperativas –, desde que o façam por escrito e com a assinatura notarialmente reconhecida. É isto que o governo apresenta em sede de concertação social. Que postura poderão ter os sindicatos? A de ajoelharem? A de abdicarem? E, já agora, os nossos deputados? Aqueles que foram eleitos pelo povo português para defender os seus interesses e não apenas os interesses de alguns? Vão aprovar estas medidas? Uma medida despudoradamente inconstitucional, como a que abre uma “via verde” para a contratação a prazo? Uma medida indecente – indigna? –, como aquela que, pela vez primeira entre nós, permite a renúncia a todo o tempo, coonestando a abdicação do trabalhador perante o empregador, através de uma simples assinatura reconhecida notarialmente?
Segundo o velho ditado, “entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. Mas não com a Agenda Trabalho XXI. Esta é uma lei que chancela a liberdade do mais forte para oprimir o mais fraco. Precário e abdicante, eis o novo protótipo de trabalhador, proposto por esta agenda. Soy Contra!