
A nova presunção de contrato de trabalho no âmbito das plataformas digitais, apresentada no anteprojeto de lei da reforma da legislação laboral, é tudo menos uma presunção de laboralidade simples e eficaz, como determina a Diretiva (UE) 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais. Pelo contrário, é uma presunção (?) particularmente complexa e de eficácia quase nula pelas razões que se passam a expor:
1º A diretiva impõe a obrigação de os Estados-membros estabelecerem uma presunção que corresponda aos seus conceitos nacionais. Assim, importa ter em atenção a noção legal de contrato de trabalho — artigo 11º do Código do Trabalho —, que estabelece a obrigatoriedade de existir subordinação jurídica, mas não dependência económica. Neste sentido, a exigência do nº 3 do artigo 12º do anteprojeto aprovado, que restringe a possibilidade de aplicação da presunção aos casos em que exista, para além da regularidade de prestação de uma atividade ao beneficiário da atividade, a dependência económica da plataforma, que significa que o prestador de atividade tem de obter 80% ou mais do seu rendimento ¬anual, não está em conformidade com a noção de contrato de trabalho do nosso direito e exige mais do que o facto presumido.
2º A diretiva estabelece a obrigatoriedade de consagrar uma presunção legal ilidível e efetiva que vise uma facilitação processual, o que significa que deve existir uma verdadeira presunção especificamente dedicada ao trabalho nas plataformas digitais e que esta deve ser efetiva. Ora, Portugal já tem uma presunção específica para este tipo de relação de trabalho (artigo 12º-A) precisamente porque chegou à conclusão de que a presunção geral de laboralidade prevista no artigo 12º não era adequada às plataformas digitais. A presunção prevista no artigo 12º era e é muito positiva para as relações de trabalho clássicas, mas os indícios são escassamente operacionais para o trabalho nas plataformas digitais. O que o anteprojeto faz é propor a eliminação da presunção específica (e eficaz) que já existe, substituindo-a pela aplicação da presunção geral.
3º A nova formulação proposta no anteprojeto assenta, além disso, numa “espiral de complexificação” de aplicação quase impossível. Para além de aplicar a presunção geral do artigo 12º, nº 1, que se aplica às relações de trabalho clássicas, o anteprojeto propõe um novo indício adicional para que se prove a existência de contrato de trabalho no âmbito das plataformas digitais. Tal indício, por sua vez, assenta num conceito indeterminado — “restrições à autonomia organizativa do prestador” —, o qual, diz-se no anteprojeto, deve ser preenchido com base na “ponderação” de quatro novos factos: a) determinação dos períodos de trabalho ou de ausência pelo beneficiário da atividade; b) restrições à liberdade de aceitação de tarefas pelo prestador da atividade; c) limitação do recurso a subcontratados pelo prestador da atividade, e d) escolha dos clientes pelo beneficiário da atividade. O legislador não explica como será realizada esta “ponderação”, além de que os “factos” apontados não respeitam o que a diretiva consagra. Para além disso, afirma-se depois, para “complicar” ainda mais toda esta já complexa operação, que aquela ponderação apenas se aplica se se verificarem, adicionalmente, dois novos requisitos de observância cumulativa — prestação regular de uma atividade e dependência económica.
4º O anteprojeto exige, portanto, o seguinte iter na aplicação da presunção: parte-se de uma presunção geral, que é desadequada para o trabalho prestado nas plataformas; analisa-se um indício específico e adicional, que é um conceito indeterminado; concretiza-se tal indício com base em quatro novos fatores, que não correspondem aos que a diretiva indica e sem que se saiba como devem estes ser ponderados, e apreciam-se ainda dois novos requisitos adicionais de preenchimento cumulativo, sem os quais tudo volta para trás e a presunção não funciona. Simples e eficaz? Nem no papel… A nova formulação da presunção é muito mais complexa do que a que existe no atual artigo 12º-A (e que já estava a ser abundantemente aplicada pelos tribunais) e muitíssimo mais complexa do que a presunção geral de laboralidade prevista no artigo 12º do Código do Trabalho.
5º A diretiva estabelece que a determinação da existência de uma relação de trabalho deve basear-se primeiramente nos factos relativos à execução efetiva do trabalho, nomeadamente na utilização de “sistemas automatizados de monitorização ou sistemas automatizados de tomada de decisões na organização do trabalho em plataformas digitais” (artigo 4º, nº 2). Ora, os factos propostos no anteprojeto em nada se relacionam com a gestão algorítmica para os quais a diretiva aponta. Aliás, há toda uma parte da diretiva (capítulo III) que o anteprojeto ignora e não transpõe e que está relacionada com a gestão algorítmica. Passa-se de uma presunção específica para as plataformas digitais, que era eficaz e que já vinha sendo recorrentemente aplicada pelos tribunais, para uma presunção que assenta numa “espiral de complexificação”, que é de muito difícil concretização e que é tudo menos eficaz.
6º O anteprojeto também propõe revogar o atual nº 8 do artigo 12º-A, relativo ao papel dos intermediários. Todavia, o artigo 3º da diretiva estabelece que os Estados-membros devem tomar as medidas adequadas para assegurar que, quando uma plataforma de trabalho digital recorre a intermediários, as pessoas que trabalham em plataformas digitais que têm uma relação contratual com um intermediário beneficiam do mesmo nível de proteção que as pessoas que têm uma relação contratual direta com uma plataforma de trabalho digital. Para o efeito, afirma-se que os Estados-membros devem tomar medidas que incluam “sistemas de responsabilidade solidária.” O Código do Trabalho consagra a igualdade de tratamento e a responsabilidade solidária no caso de contratos de trabalho com intermediários, em conformidade com a diretiva. O anteprojeto propõe a revogação desta última regra sem a substituir por mecanismos adequados que transponham esta parte da diretiva. Por todas estas razões, considera-se que esta nova presunção — a ser uma presunção — é tudo menos eficaz, não cumpre com o que está previsto na diretiva, é particularmente complexa e opaca, não visa uma facilitação processual e viola a cláusula de não regressão prevista no artigo 26º da mesma.
Em suma, esta alegada presunção não promove o objetivo europeu de facilitação processual e vem dificultar sobremaneira a qualificação do contrato que une os prestadores de atividade às plataformas digitais como sendo um contrato de trabalho, circulando em sentido diametralmente oposto ao estabelecido pela diretiva.
É caso para dizer: estamos perante uma “pseudopresunção”, que não cumpre materialmente com a diretiva da União Europeia.
Texto publicado originalmente no jornal Expresso, 15 de agosto de 2025