1. Declarar o trabalho doméstico? Para quê?

Entre maio de 2023 e maio de 2025, mais 34 mil pessoas foram registadas na Segurança Social como trabalhadoras do serviço doméstico. O facto é muito relevante porque, nas duas décadas anteriores, a formalização tinha caído de perto de 170 mil em 2001 para cerca de 63 mil em 2022. A viragem deve-se principalmente a uma alteração no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovada no âmbito da chamada “Agenda do Trabalho Digno”. Passou a ser crime as entidades patronais não comunicarem à Segurança Social a admissão de trabalhadores no prazo de seis meses, com pena até três anos de prisão. A medida gerou então algum sobressalto mediático. O efeito fez-se sentir: dezenas de milhares de trabalhadoras do serviço doméstico - um grupo historicamente desvalorizado do ponto de vista social e económico e desconsiderado pela lei, com regime laboral próprio, fora do Código do Trabalho - passaram a ter alguma proteção social. E agora? O Governo propõe eliminar a norma, que aliás vale não apenas para o serviço doméstico, mas para todo o trabalho não declarado. Na prática, dá cobertura a empregadores incumpridores e reforça a desproteção de quem já costuma estar numa situação de marginalização. É uma escolha que diz muito.

2. As plataformas afinal não têm trabalhadores?

Hans Donner, fundador do coletivo Estafetas Unidos, venceu a Glovo em tribunal no passado mês de julho: foi reconhecido como trabalhador sem termo, com os direitos associados (remuneração mínima, férias, proteção contra despedimento sem justa causa…). A recente decisão resulta de uma ação inspetiva da Autoridade para as Condições de Trabalho sob uma norma específica criada também em 2023 para fazer cumprir a nova “presunção de laboralidade” aplicável ao trabalho através de plataformas. Só em 2024, a ACT levantou 1217 autos relativos a estafetas. Em 884 casos reportou ao Ministério Público o incumprimento por parte das plataformas, para que fosse acionado o reconhecimento do contrato em tribunal. Nos tribunais, as sentenças variaram, mas o Supremo Tribunal de Justiça confirmou, em maio de 2025, a existência de uma relação de trabalho subordinado entre um estafeta e a Glovo, aplicando os novos indícios legais (art.º 12.º-A do Código do Trabalho). O que faz o Governo agora? Propõe revogar a presunção específica, remetendo para a norma geral (art.º 12.º do Código, desajustado face ao mundo digital), e acrescenta uma condição quase impossível: além de cumprir indícios agora desenhados pelo governo para serem contornados pelas empresas, o trabalhador tem ainda de obter da mesma entidade 80% do seu rendimento - critério que, como o governo bem sabe, a maioria dos estafetas, conectados a várias aplicações, dificilmente cumpre, e que é aliás particularmente perverso num país onde cresce o duplo emprego (que nem por isso se desenquadra de um contrato de trabalho). A nova proposta implode os passos dados nos últimos dois anos para reconhecer alguns direitos e incluir estes trabalhadores no perímetro da lei laboral. Acresce que colide diretamente com a Diretiva Europeia sobre trabalho em plataformas, que exige aos países o reforço da proteção e a facilitação do reconhecimento de contratos para trabalhadores uberizados. Ora, o governo promove, pelo contrário, um regime que impede na prática este reconhecimento e que elimina as proteções criadas.

3. Outsourcing: regresso à ausência de regras

Após impulso do sindicato do setor, em fevereiro passado a ACT intimou a Fidelidade a aplicar o seu contrato coletivo a trabalhadores em outsourcing, ao abrigo do novo artigo 498.º-A do Código do Trabalho, também em vigor desde maio de 2023, que passou a garantir aos subcontratados os mesmos direitos que os trabalhadores com vínculo direto à empresa utilizadora. Este novo artigo do Código tem um alcance potencial que é importante para dezenas ou centenas de milhares de trabalhadores, combatendo os incentivos à terceirização como forma de reduzir salários e excluir trabalhadores da contratação coletiva. Outra norma recente, o artigo 338.º-A (intitulado, de forma algo exagerada, “Proibição do recurso à terceirização de serviços”), impede que a empresa despeça hoje para subcontratar durante o ano seguinte para as mesmas funções. Considerada pelas confederações patronais como um “ataque à liberdade de iniciativa económica”, a norma foi validada pelo Tribunal Constitucional. O acórdão, de 15 de julho deste ano, sublinha que se trata de “impedir, por um lado, a instrumentalização do despedimento, bem como os riscos de precarização do trabalho”. Uma decisão valiosa. O Governo pretende agora revogar ambas as normas e reinstalar a arbitrariedade no recurso ao outsourcing.

4. Uma ofensiva liberal sem precedentes

Estes são apenas três exemplos da proposta do Governo que arrasa alguns dos avanços, que, em 2023, tornaram a lei laboral um pouco menos desequilibrada, mesmo que não a tenham expurgado de muitas das regras que continuaram a favorecer o poder dos empregadores. Ironicamente chamada “Trabalho XXI”, a proposta de lei do governo introduz muitas outras regressões graves, como tem sido assinalado por sindicatos e juristas, todas em favor do lado mais forte desta relação. Nos contratos a prazo, passa a ser possível contratar precariamente para funções permanentes, bastando fundamentar o contrato a prazo no facto de o trabalhador nunca ter tido um contrato sem termo - criando-se assim a figura do “eterno precário”, como bem assinalou João Leal Amado, noutro jornal. O banco de horas individual regressa, permitindo jornadas de 10 horas sem pagamento como trabalho suplementar, num regime que passa a ser decidido pela empresa, bastando o assentimento individual do trabalhador, sem qualquer intermediação coletiva. Nos créditos laborais, prevê-se que o trabalhador pode renunciar aos valores que lhe são devidos pela empresa (de salários em falta, ou de férias, por exemplo), com mera assinatura de uma declaração, tornando possível abdicar, sob chantagem, de valores devidos pelo empregador (a referência governamental à necessidade de um notário no processo é apenas risível). Nos despedimentos, elimina-se a obrigação geral de reintegração em caso de despedimento ilícito, abrindo caminho para que Portugal passe a ter, na prática e em choque frontal com a Constituição, um regime de despedimento livre desde que a empresa pague. No caso dos pais e mães trabalhadoras, passa a obrigar-se ao trabalho ao fim de semana ou à noite no âmbito do horário flexível (se esse horário fizer parte da atividade da empresa) e, como tem sido amplamente debatido, limita-se a licença de amamentação e burocratiza-se o seu exercício, a partir de uma estigmatização sem qualquer base em dados concretos. No caso do teletrabalho e do trabalho suplementar, elimina-se a proteção do princípio do tratamento mais favorável, permitindo negociar para estas matérias regras abaixo da lei geral...

Talvez nunca, em 50 anos, um governo tenha tentado impor tamanho desequilíbrio do direito do trabalho. Trata-se, na realidade, de um novo Código do Trabalho, violentamente liberal, à medida e até indo além das reivindicações patronais, que desvaloriza profundamente o trabalho e que impõe uma verdadeira desconsideração pela pessoa do trabalhador em inúmeras matérias centrais. Não tenho dúvidas de que, por várias vias, esta proposta tem de ser derrotada. Nalguns casos, como nos despedimentos, o mais certo é cair por inconstitucionalidade. Noutros, como nas plataformas, por chocar com diretivas europeias. Haverá casos em que já se sabe não haver qualquer maioria parlamentar de suporte (como no luto gestacional). Mas acima de tudo, a ofensiva deve ser repelida pela indignação e mobilização coletivas. Há muito a melhorar na lei do trabalho? Com certeza. Em velhas questões, como o tempo do trabalho, a precariedade ou o salário, e em novas, como a digitalização, a gestão algorítmica ou o trabalho sob condições climáticas extremas. Mas impedir esta contra-reforma laboral é a primeira condição para que isso seja feito.

Texto publicado originalmente no Expresso, 19 de agosto de 2025