As alterações à legislação laboral a efetuar pelo Governo ora em funções já se anunciavam no programa eleitoral da AD. Naturalmente, pois, desde a vitória desta coligação e até finais de julho, quando se tornou conhecido o documento Trabalho XXI – Anteprojeto de Lei da Reforma da Legislação Laboral, muito se especulou sobre em que se saldaria essa nova reforma das leis do trabalho.

Algo surpreendentemente, dedicou-se, na comunicação social, no debate público, especial atenção a uma das propostas descritas naquele programa eleitoral, como se, de entre a dezena de principais linhas, ali descritas, de intervenção neste domínio, aquele subtópico transportasse em si o condão transformador da prometida revisitação do quadro normativo laboral. Refiro-me à anunciada possibilidade de “maior flexibilidade no gozo de férias por iniciativa do trabalhador, com a possibilidade de aquisição de dias de férias, com um limite a definir contratualmente entre as partes”, enquadrada, aliás, no propósito de promoção de “maior adaptabilidade dos tempos e modos de trabalho de forma a dar resposta aos desafios que o equilíbrio entre vida pessoal e profissional colocam aos trabalhadores e empresas”. Aparentemente, o programa que declarava Portugal não pode parar permitiria aos trabalhadores adquirir o direito a parar mais um bocadinho.

Foi, dizia, com alguma perplexidade que assisti à canalização de tal interesse para esse particular ponto – a possibilidade de compra de dias de férias – da programada agenda laboral, já que eram diversas, de enorme importância e impacto potencial e, de resto, eloquentemente apresentadas, as demais proclamações reformistas constantes do programa eleitoral da AD. Até se afirmava a intenção de “potenciar as relações laborais estáveis, o investimento das partes na relação laboral, e a efetiva integração dos trabalhadores”! Poderá justificá-lo o singelo facto de aquela ser, talvez, de todo esse conjunto de declarações de intenção, a única que se dotou de um grau mínimo de concretização. Não, um programa eleitoral não tem, evidentemente, de ser preciso e detalhado, como pode sê-lo só em alguns pontos, decerto cuidadosamente escolhidos… Mas, convenhamos, como poderia lucubrar-se, por exemplo, sobre o significado de “modernizar as regras para confrontar a segmentação do mercado e ajustá-las às transformações no mundo do trabalho”?... Talvez explique aquele interesse, ainda, a circunstância de nem o programa eleitoral, nem qualquer outro elemento, até à publicitação do documento Trabalho XXI, tornar conhecido o propósito de possibilitar a sucessão de contratos a termo ao longo de toda a vida ativa do trabalhador, o de liquidar a aplicação do Código do Trabalho aos estafetas e afins, o de tornar o despedimento, esse sim, passível de “compra” pelo empregador, o de permitir, pela primeira vez expressa e inequivocamente, ao trabalhador a renúncia aos seus créditos e, portanto, ao empregador a possibilidade de, licitamente, se eximir ao seu pagamento, o de viabilizar que, em sede de negociação coletiva, o valor pago pelo trabalho suplementar seja fixado em valor inferior ao previsto na lei, entre outros instrumentos, decerto gizados com base na premissa, também afirmada no programa da AD, de que “um trabalhador não pode ser pobre!”.

Se a previsão da designada possibilidade de aquisição de dias de férias podia ter vindo a revelar-se uma medida com sensível impacto na vida dos homens e mulheres que trabalham? Talvez pudesse, embora, no cômputo global, isso não descaracterizasse o Anteprojeto Trabalho XXI apresentado pelo Governo como um marco de profundo retrocesso no plano das condições de trabalho… Não foi isso, contudo, que se verificou. Afinal, a referida “maior flexibilidade no gozo de férias por iniciativa do trabalhador, com a possibilidade de aquisição de dias” saldou-se na proposta de este passar a poder faltar ao trabalho ao abrigo do regime das ausências justificadas, até dois dias, desde que contíguos ao período de férias pagas a que já teria direito. Só que esses, evidentemente, não pagos. Tem mais dois dias, em querendo, para comer bolas de Berlim, embora sem dispor de mais dinheiro para as comprar, e... fim.

Não se trata, entenda-se, de uma má medida. Decerto, aqueles trabalhadores cujo rendimento permita a perda de um ou dois dias de salário em troca do alargamento do período de descanso farão dela uso profícuo. Mas apresentá-la como se, no âmbito das alterações que podem vir a concretizar-se, tivesse um impacto digno de nota é comparável a, lá está, comer uma bola de Berlim de manhã e outra de tarde em cada dia de praia, mas anunciar alegremente que se bebeu o café sem açúcar…

Publicado originalmente no jornal Público de 22 de agosto de 2025.