Sem anúncio prévio ou debate político substancial durante a campanha eleitoral (o que, só por si, levanta sérias dúvidas quanto à legitimidade democrática do processo), impõe-se agora alertar para e promover a discussão pública sobre os aspetos menos “mediáticos” do Anteprojeto. Apesar da atenção gerada pelas declarações da Ministra Palma Ramalho sobre a dispensa para amamentação ou a mercantilização do direito a férias, há propostas tecnicamente mais discretas que poderão ter efeitos muito mais gravosos e duradouros.
De forma geral, este Anteprojeto pode ser enquadrado em três eixos estruturais: (i) a alegada flexibilização da legislação, assente no alargamento da precariedade laboral; (ii) o agravamento dos entraves à conciliação entre vida pessoal e profissional; (iii) o enfraquecimento dos mecanismos de fiscalização e o consequente alargamento da impunidade na violação de normas laborais por parte das entidades empregadoras. Outrossim, sem esquecer a redução do poder coletivo dos trabalhadores, evidente nas alterações propostas à Lei da Greve.
Sobre o primeiro eixo, o Anteprojeto contém propostas dificilmente compatíveis com a bússola constitucional que orienta o direito do trabalho: o artigo 53.º, que consagra a garantia da segurança no emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa. Este preceito constitucional pressupõe o contrato de trabalho por tempo indeterminado como modelo-base das relações laborais — a “estrela solar” que orienta o sistema jurídico-laboral.
Desta forma, e sem descurar os períodos de alargamento da duração do contrato de trabalho a termo, é com especial dúvida jurídico-constitucional que se assiste à previsão de uma norma que determina a contratação de um trabalhador que nunca tenha celebrado um contrato de trabalho por tempo indeterminado como fundamento legítimo para celebrar um contrato de trabalho a termo certo.
Apesar do contexto socioeconómico contemporâneo, marcado, entre outros fenómenos, pela erosão do modelo tradicional de relação laboral, a contratação a termo é (e deve ser!) a exceção, não a regra geral da modalidade de contrato de trabalho – a qual deverá essencialmente existir especialmente em períodos de necessidades temporárias ou de lançamento de novas atividades de duração indeterminada. Em rigor, com esta norma, pelo simples facto de nunca se ter celebrado um contrato de trabalho por tempo indeterminado, um trabalhador fica (e quiçá ad eternum) suscetível de ser sempre contratado a termo, independentemente do seu posto de trabalho se tratar de uma necessidade permanente da entidade empregadora e de esse trabalhador já ter vastos anos de experiência profissional. No entanto, para o Governo, uma norma que, no limite, pode potenciar uma carreira laboral completa exclusivamente baseada em contratos a termo funciona na perfeição para fazer milagres na competitividade e constituir um milagre do crescimento económico – à sombra, claro, da estabilidade e dignidade do trabalho.
A isto junta-se o regresso do polémico banco de horas individual, que havia sido eliminado na revisão do Código do Trabalho de 2019. Volvidos seis anos, reaparece agora a tentativa de ressuscitar um regime que, na prática, permitia às entidades empregadoras impor unilateralmente mais tempo de trabalho, com a mera adesão a um regulamento interno, muitas vezes contra a vontade do trabalhador. Esta medida desvirtua por completo o princípio da negociação e fragiliza ainda mais a conciliação entre vida pessoal e profissional. O que o Governo quer reintroduzir é a possibilidade de impor até mais duas horas de trabalho diário, num total de 150 horas anuais, sem compensação por trabalho suplementar.
Soma-se ainda a reintrodução da possibilidade de os trabalhadores renunciarem a créditos laborais, de acordo com a nova proposta de redação do 337.º, n.º 3, como se tratasse de um verdadeiro uso da autonomia individual dos trabalhadores.
Quanto ao segundo eixo, o da conciliação, mais do que debater as declarações sobre a dispensa para amamentação (as quais, aliás, considero não terem resultado de um erro de estratégia de comunicação política, bem pelo contrário, mas sim de uma forma de puxar os holofotes para uma temática que afeta um grupo residual de trabalhadores e afastar a discussão das outras normas propostas), é particularmente preocupante alteração ao regime do horário flexível, nomeadamente no que concerne aos trabalhadores em regime de turnos (pense-se, por exemplo, em estabelecimentos comerciais) com a impossibilidade de, no seu pedido, estabelecerem a fixação dos seus períodos de descanso (em especial no trabalho noturno e aos fins de semana) – possibilidade essa que, na interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, era reconhecida como legítima aos trabalhadores em prol do direito à conciliação.
Não obstante, mais do que um retrocesso em matéria de conciliação, importa salientar algumas oportunidades perdidas: o alargamento da proteção contra o despedimento da trabalhadora que aleita — que, na prática, enfrenta o mesmo risco que aquela que amamenta; e, no domínio da licença parental complementar, a extensão da idade do menor até aos oito anos, bem como o aumento da duração da licença parental alargada para quatro meses. Estas medidas estariam, de resto, em consonância com a Diretiva (UE) 2019/1158, a qual também impõe necessidade de alterações no regime de atribuição e no valor do respetivo subsídio.
Referente ao terceiro eixo, a verdade é que o Código do Trabalho já contém algumas lacunas que, na prática, transformam certas punições em autênticos presentes para as entidades empregadoras. Pense-se, por exemplo, num falso trabalhador a termo que, após ver o seu contrato convertido em contrato por tempo indeterminado, é despedido sem aviso prévio, sem justa causa e sem direito a indemnização, à custa de um período experimental mais alargado. No entanto, o que o Governo agora propõe é, precisamente, premiar — com grande embrulho e laçarote — os incumprimentos das regras laborais por parte das empresas.
Um exemplo é a possibilidade de em qualquer situação (a excepção vira regra), o empregador requerer a recusa da reintegração do trabalhador em caso de despedimento ilícito, conforme a nova redação proposta no artigo 392.º. Na prática, uma empresa com meios financeiros suficientes e sem motivo legítimo para despedir um trabalhador poderá simplesmente pagar uma indemnização e livrar-se de quem quiser, quando quiser e como quiser. Onde fica, assim, a verdadeira garantia de proteção contra o despedimento ilícito?
Mais exemplos? A restrição dos direitos de defesa em procedimentos disciplinares para empresas com até 250 trabalhadores — um universo que vai muito além de microempresas familiares — ou a eliminação da norma que o Tribunal Constitucional, muito recentemente, considerou conforme à Constituição: a proibição de recorrer à terceirização de serviços (outsourcing) para suprir necessidades que, nos 12 meses anteriores, eram asseguradas por trabalhador cujo contrato cessou por despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho.
Não devemos cair na tentação maniqueísta de ver sempre o empregador como “vilão” e o trabalhador como o “bom”. Contudo, importa recordar a verdadeira génese do Direito do Trabalho: regular uma relação profundamente desigual e assimétrica, em que uma parte está subordinada à outra. Abusos existem de ambos os lados, mas a história demonstra que tendem a ser mais frequentes e graves por parte de quem detém o poder, e não de quem é dominado.
Em mais de dois anos de prática forense numa sociedade de advogados, nunca presenciei uma trabalhadora a amamentar para além dos dois anos. Pelo contrário, era semanal a constatação de multinacionais ou empresas de grandes grupos económicos, com lucros consideráveis, recorrerem a pedidos de prestação de serviços de escrita criativa para justificar falsas necessidades temporárias para contratar a termo ou para elaborar falsos acordos de revogação para trabalhadores com responsabilidades familiares, baseados em extinções de postos de trabalho fictícias.
Se o Governo se preocupa tanto com os abusos dos direitos laborais, talvez devesse também preocupar-se com os abusos dos deveres laborais e reforçar os recursos humanos e a capacidade inspetiva da ACT e da Segurança Social.
É imprescindível promover um debate sério e rigoroso sobre a verdadeira dimensão deste Anteprojeto, para lá dos temas que ocupam a “espuma dos dias”. O Governo justifica estas medidas com o objetivo de “fomentar e dinamizar a contratação coletiva, combater a precariedade laboral e assegurar uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e profissional”, mas as alterações propostas apontam no sentido oposto. O alegado crescimento económico desejado não pode assentar no aumento da precariedade e em atropelos constitucionais: a isto chama-se retrocesso.
Publicado originalmente no jornal Público de 20 de agosto de 2025.