Têm-se multiplicado no espaço público as opiniões sobre o Anteprojeto de Lei da Reforma da Legislação Laboral (“Trabalho XXI”). Junto-me às vozes mais críticas e seleciono sete razões para tal (remetendo para alguns artigos do documento).
1.Iludir a superação da precariedade. Se os contratos a prazo apenas são admissíveis em situações de excecionalidade (necessidade temporárias de trabalho, casos de doença, sazonalidade, etc.), o facto de agora se prever que os contratos a termo certo possam passar de uma duração máxima de dois anos (incluindo renovações) para três anos (art. 148.º, n.º1) – supostamente como forma de promover uma contratação mais flexível e ajustada a momentos de maior pressão profissional –, constitui uma ilusão de estabilidade. A qual, de resto, será aprofundada se um/a trabalhor/a que nunca antes tenha prestado atividade ao abrigo de contrato de trabalho sem termo puder vir a ser contratado de forma sucessiva por distintos empregadores e ao longo de anos, numa perpetuação de contratações a prazo.
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Tolerar o recurso ao outsourcing. Este ponto complementa o anterior pela insegurança que induz, ao promover a substituição de trabalhadores com expectativas de empregos seguros por trabalhadores voláteis. Se até aqui o recurso a mão de obra externalizada (mais acessível economicamente) estava impedido nos 12 meses subsequentes a um despedimento (no caso de se tratar de recurso a serviços externos para satisfazer necessidades até então asseguradas pelo trabalhador despedido), o anteprojeto elimina essa proibição (art. 338.ºA) como forma de facilitar os processos de restruturação empresarial. Sucede, porém, que esta proposta choca com o acórdão 555/2025 do Tribunal Constitucional (de 23/07), que não encontra qualquer violação da lei associada à proibição do recurso ao outsourcing.
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Proclamar a desconfiança acrítica em vez do afeto. A conciliação entre trabalho-família é fundamental e tem múltiplas nuances. Menciono apenas duas que são visadas no pacote laboral: por um lado, desconfia-se das mães que amamentam depois dos dois anos de idade da criança, limitando-se esse direito (art. 47.º) – posição contrariada por especialistas e pela própria Direção-Geral de Saúde, para quem a amamentação pode ir além dos dois anos se acompanhada por alimentação complementar – e suspeita-se de possíveis fraudes (acusações que a Autoridade para as Condições de Trabalho não reporta nos seus registos); por outro, a falta por luto gestacional (art. 38.ºA) é revogada, o que se traduz na impossibilidade de remuneração concedida ao pai por faltar ao trabalho num contexto de infortúnio familiar.
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Vender tempo livre sem compensação. Ao direito a férias confere-se um eventual prolongamento até dois dias extras (art. 249, n.º 2, k). É apresentado como um direito (porque é solicitado pelo trabalhador e confere-lhe flexibilidade de escolha), mas na prática trata-se de convidar o trabalhador a descansar sem receber, i.e., a gozar férias extras sem retribuição correspondente.
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Enfraquecer a conflitualidade laboral. Não surpreende que governos e empresas convivam mal com greves. Mas o alargamento do âmbito dos serviços mínimos (que a lei da greve já regula suficientemente) ou a sua obrigatoriedade ou fixação prévia de percentagens (arts 537; 538) visa certamente enfraquecer a ação sindical. Mas é imperativo assinalar que no caso das conhecidas greves de maio da CP foi o próprio tribunal arbitral que decidiu não decretar serviços mínimos por razões de segurança, tendo a própria CP considerados insuficientes os 15% propostos. Haverá também a intenção de desacreditar os colégios arbitrais cuja composição, recorde-se, é tripartida?
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Retroceder na regulação do trabalho via plataformas. Os pouco mais de dois anos de vigência da lei 13/2023 sugerem que é prematuro e inadequado introduzir alterações nos pressupostos para um reconhecimento de contrato de trabalho (indícios de laboralidade previstos no artigo 12.º A, que agora se altera). No contexto da reforma atual, a suposta prioridade concedida a uma relação contratual entre estafetas e intermediários poderá configurar-se como uma forma de proteger as plataformas, predispostas que sempre têm estado para invisibilizar os indícios de laboralidade. E ao substituir uma presunção de contrato de trabalho específica do trabalho em plataformas por critérios mais gerais, secundarizando a gestão algorítmica, o anteprojeto dificulta o seu reconhecimento e afasta-se dos propósitos da Diretiva 2024/2831 (relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais) que diz querer respeitar.
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Governar para harmonizar ou desequilibrar? O anteprojeto cria enviesamentos, reforçando os desequilíbrios (que sempre existiram mas agora se acentuam) na relação entre capital e trabalho. Sobressaem medidas favoráveis aos representantes do mundo empresarial e acentua-se a desvalorização do trabalho. E não mencionei aqui outros aspetos igualmente criticáveis: simplificação dos despedimentos por justa causa; reintrodução do banco de horas individual (que favorece um aumento dos horários de trabalho semanais); redução para metade da formação aos trabalhadores nas Pequenas e Médias Empresas; enfraquecimento da contratação coletiva, ao suspender-se a arbitragem tendente a apreciar a denúncia da convenção coletiva, o que significa abrir caminho à caducidade, etc.
Em resumo, o anteprojeto de lei distancia-se de uma visão para o mundo do trabalho pautada pela igualdade, dignidade e respeito pelo trabalho enquanto valor humano. Os sete “pecados” aqui selecionados aproximam-se, assim, mais da negação do que da afirmação do trabalho digno. Por isso, nunca é demais recordar o pressuposto básico da Declaração de Filadélfia (1944): “O trabalho não é uma mercadoria!”.
Estando dotada de um viés ideológico que não surpreende, a agenda “Trabalho XXI” está, no entanto, sem o querer, a instigar o campo sindical a promover a coesão que lhe tem faltado. A evidente rejeição da UGT (central sindical originariamente fundada com o apoio de socialistas e sociais-democratas) e a clara oposição da CGTP criam condições para uma “unidade na ação”, um desafio tantas vezes reclamado mas tão poucas vezes praticado. Se quiser reafirmar a centralidade do trabalho que sempre perfilhou e que esta proposta de reforma laboral secundariza, o movimento sindical não pode perder esta oportunidade para falar a uma só voz.
Texto originalmente publicado no jornal Público do dia 26 de agosto de 2025