
A greve consiste num direito fundamental dos trabalhadores, consagrado no art. 57.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Mas não se trata de um direito absoluto ou ilimitado, que sobre todos os outros deva prevalecer e todos os outros deva sacrificar ou esmagar. A CRP é inequívoca quanto a este ponto, lendo-se no n.º 3 do mesmo art. 57.º que a lei define as condições de prestação, durante a greve, de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.
Existe, pois, uma explícita credencial constitucional para limitar ou restringir o direito à greve. Essa credencial radica na ideia de conflito ou colisão de direitos ― o conflito entre o direito à greve e outros bens jurídico-constitucionais. Deparamos aqui, contudo, com conceitos difusos e indeterminados, que carecem de densificação. Desde logo, o que é isso de necessidades sociais impreteríveis? Dir-se-á que necessidade impreterível é aquela que não pode deixar de ser satisfeita, é aquela que é inadiável, que se torna imperioso satisfazer, sendo socialmente intolerável que a mesma seja sacrificada pela greve. O legislador ensaia uma resposta para esta pergunta, em sede de Código do Trabalho (CT), através do seu art. 537.º, n.º 2, do qual consta uma lista exemplificativa de setores de atividade tidos por essenciais, cujas empresas, segundo a lei, se destinam à satisfação de tais necessidades.
Ora, o quadro normativo acima esboçado convida o aplicador do direito a raciocinar em moldes silogísticos, segundo um esquema simples, quiçá simplista. Premissa maior: nas empresas que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, impõe-se a prestação de serviços mínimos. Premissa menor: a lei considera que as empresas dos setores constantes do n.º 2 do art. 537.º se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis. Conclusão: ocorrendo uma greve numa empresa que integre um desses setores, impõe-se, sempre, a prestação de serviços mínimos.
Parece ser este o sentido pretendido com as sibilinas alterações que o anteprojeto "Trabalho XXI" se propõe introduzir no CT: por um lado, na nova redação proposta para o n.º 1 do art. 537.º, passa a ler-se que «em empresa ou estabelecimento que se destine à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, é devida a prestação de serviços mínimos indispensáveis à satisfação daquelas necessidades»; por outro lado, a nova redação proposta para o art. 538.º refere-se, reiteradamente, já não, como hoje sucede, à definição dos serviços a assegurar durante a greve, mas à «definição da medida de serviços a assegurar durante a greve».
Em suma, afigura-se que o anteprojeto pretende veicular a ideia segundo a qual as necessidades sociais impreteríveis resultariam automática e diretamente de lei, tendo o legislador, num juízo abstrato de prognose, identificado os setores ou empresas que satisfazem tais necessidades, pelo que seria despicienda a discussão em torno da questão de saber se os serviços prestados por empresa que se enquadre nesse setor acorrem ou não a tais necessidades. A resposta resultaria, automática e cristalina, da lei: sim, sempre! O problema, aqui, residiria apenas na medida dos serviços mínimos a prestar pelos grevistas, não na existência dos mesmos, pois estes decorreriam inelutavelmente da lei.
Serei claro. A meu ver, se esta for a leitura a fazer das novidades constantes do anteprojeto, tal implicará a rotunda desconformidade destas alterações normativas com o disposto no art. 57.º da CRP. Assim lidas, interpretadas e aplicadas, estas normas deverão ser declaradas inconstitucionais, por violação qualificada do direito de greve, isto é, por restrição excessiva do mesmo.
Com efeito, é sabido que as restrições ao direito de greve deverão respeitar os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (tal como dispõe o próprio n.º 5 do art. 538.º do CT), o que pressupõe, sempre, uma análise casuística da concreta greve em questão e de todas as circunstâncias relevantes de tempo, modo e lugar que a envolvem, para apurar se há ou não necessidades sociais impreteríveis que a mesma venha colocar em causa.
Vale dizer, a integração da empresa num dos setores de atividade elencados no n.º 2 do art. 537.º do CT não constitui condição bastante para que, inelutavelmente, devam ser fixados serviços mínimos durante a greve. No caso dos transportes públicos, p. ex., tudo poderá depender de fatores tão diversos como o da duração da greve, o de ser ou não uma greve que abranja, em simultâneo, a generalidade dos transportes públicos, etc. Cabe perguntar: se, p. ex., houver uma greve de curta duração no Metro, será imperativo que se fixem serviços mínimos?
Repete-se: pode haver greves em empresas que operam num setor de atividade incluído no catálogo legal de serviços essenciais (p. ex., no setor dos transportes públicos) nas quais, atento o concreto circunstancialismo de tais greves, não é posta em xeque a satisfação de necessidades sociais impreteríveis ― e nas quais, portanto, não deverão ser prestados quaisquer serviços mínimos (ou, se se preferir, em que a medida de serviços mínimos será zero). Não há lugar, em sede de necessidades impreteríveis e de serviços mínimos, para juízos abstratos de prognose por parte do legislador. O juízo não pode deixar de ser concreto e casuístico. Só assim se logrará respeitar a CRP, restringindo o direito de greve em obediência ao princípio da proporcionalidade.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios a 28 de agosto de 2025