
"A sede de inovações que há muito se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da indústria, os caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, ... deu em resultado final um temível conflito."
Esta frase foi publicada há 134 anos, em 1891. É um excerto do primeiro parágrafo da Carta Encíclica Rerum Novarum-- A condição dos operários, do Papa Leão XIII.
A que propósito vem aqui esta citação de um documento do século XIX?
De um documento do século XXI, o Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral Trabalho XXI, aprovado no Conselho de Ministros de 24/07/2025.
Por estranho que pareça, há entre estes dois documentos alguns pontos de análise, de preocupações e de propostas que se relacionam.
Desde logo, em ambos, idêntica justificação: "coisas novas" (rerum novarum):
- Para o Papa Leão XIII, em 1891, é a "sede de inovações que se apoderou das sociedades", ou seja, em síntese, a passagem de uma economia baseada nas corporações para os modelos económicos e gestionários emergentes da Revolução Industrial;
- Para o Governo, em 2025, são "os desafios do trabalho na era digital pelos quais a legislação laboral a rever, mantendo-se ancorada nos modelos tradicionais de trabalho, experimenta dificuldades" (Exposição de Motivos do Anteprojecto de Lei).
Com a ponderação de que mais de um século separa os seus contextos económicos, sociais e políticos, várias outras afinidades poderão ser encontradas entre estes dois documentos. Contudo, uma há, de ordem mais geral, que se visa aqui relevar: "a alteração das relações entre os operários e os patrões e o possível resultado num temível conflito". "Coisa nova" quanto à qual, já então, no século XIX, o Papa Leão XIII expressou preocupação, tão pertinente quanto a História Social do Trabalho bem regista nas suas causas e consequências humanas, sociais e políticas -- a histórica Questão Social.
Ora, no século XXI, não desapareceram, bem pelo contrário, essas razões - o desequilíbrio no (maior) poder dos empregadores face ao dos trabalhadores nas relações de trabalho e as suas implicações no crescimento da conflitualidade social (de "temível conflito").
De facto, como já foi escrito noutros artigos publicados em vários jornais e outras sedes, este anteprojecto governamental, a concretizar-se, vem agravar esse desequilíbrio, na linha do que nas últimas décadas tem sido a degeneração do sentido e objectivos da génese histórica (que remonta ao século XIX) do Direito do Trabalho e concretamente da sua base, a legislação laboral.
Pelo menos desde o "pacote laboral" de fim dos anos oitenta, de seguida com o primeiro Código de Trabalho (CT), de 2003, passando pelo CT de 2009 e vinte alterações de que este já foi objecto, por regra, ainda que com alguma variação de grau (destacando-se o acentuado agravamento no período dito da "troica" mormente em 2012 e, como excepção, ainda assim relativa, a "Agenda do Trabalho Digno", em 2023), também como agora sob o lema de "flexibilização do mercado de trabalho", tem sido a desregulamentação (eliminação ou redução) de direitos do e no trabalho dos trabalhadores e a associada fragilização da segurança no emprego o fio condutor das alterações à legislação laboral.
Com este anteprojecto de Lei, visando (mais) uma alteração do CT, é ainda esse maior desequilíbrio que se vislumbra, via aumento da precariedade (permanente?) dos vínculos laborais, da individualização das relações de trabalho, da facilitação dos despedimentos, da "flexibilização" da organização e duração dos tempos de trabalho, da criação de condições para maior impunidade patronal no incumprimento da própria legislação do trabalho.
Que potencial "temível conflito" de tal poderá ou não emergir é algo que ainda depende de muitos factores contextuais, institucionais e políticos. Mas desde já há (mais) razões para preocupações quanto a eventuais consequências nos locais de trabalho.
Uma vertente destas consequências a que desde logo é mais sensível quem acompanha ou acompanhou durante décadas de perto o que se passa nos locais e situações de trabalho com vista ao controle público da aplicação das disposições legais aplicáveis às relações e condições de trabalho e às situações a estas associadas. E, assim, sabe que esta progressiva desregulamentação dos direitos dos trabalhadores, ao fragilizá-los nas relações de emprego e trabalho, induz-lhes o medo (ou, pelo menos, a inibição) de, por si, reivindicarem e exercitarem os seus direitos.
E mesmo, num contexto de menor filiação sindical (sobretudo, de falta de representação e acção sindical nos locais de trabalho), é também essa consciência da sua fragilização, de insegurança e condicionamento no exercício de direitos, que é factor de coibição (e não apenas objectiva e individual, de cada trabalhador precário, mas subjectiva, generalizada mesmo aqueles que não estejam nessa condição) de, tão só, denunciarem às autoridades competentes e aos tribunais (e até aos sindicatos) a sua violação.
Referimo-nos, por exemplo, aos direitos mais ligados à prestação do trabalho, como sejam os salários na sua relação com as funções exercidas e carreira profissional, a organização e duração dos tempos de trabalho, os decorrentes de circunstanciais condições individuais relacionados com o trabalho (mães-trabalhadoras, parentalidade, trabalhador-estudante, por exemplo), contribuições para a Segurança Social, etc..
E, mais preocupante, aos direitos (à vida, à integridade física, à saúde) no domínio das condições de segurança e saúde do trabalho, ao se sujeitarem ("aceitarem") a tarefas de cuja penosidade e risco não reclamam e muito menos, como é seu direito (como "ordem ilegítima") em certos casos de risco laboral, recusam realizar.
Assim, porque a exercitação de direitos (e obrigações, claro) pelos próprios detentores é, no domínio do trabalho (como, aliás, em qualquer domínio), a via que confere maior garantia da efectivação geral, estrutural e consistente de qualquer quadro normativo, tendo em conta o que precede, a conclusão é a de que quanto mais desregulamentação dos direitos do e no trabalho, mais risco haverá de crescer a desregulação social (incumprimento do Direito do Trabalho) impune nos locais de trabalho. Por mais eficaz que seja o respectivo sistema de Inspecção do Trabalho (Autoridade para as Condições de Trabalho).
Dado o quanto o trabalho é central na vida de cada um e na sociedade (para o bem e para o mal, "tem um braço longo"), a fragilização dos trabalhadores nas relações de emprego e de trabalho carece, além disso, de atenção institucional e política pela relação de causa e efeito que tem com preocupantes problemas económicos e sociais a que neste jornal e noutros locais já nos referimos, como é o caso, por exemplo, com a situação salarial e de sobre-intensificação do trabalho1 as condições de habitação2, com o consumo3 ou com a saúde pública4).
De qual quer modo, sem prejuízo disso, a análise, reflexão e debate institucional e político deste anteprojecto de mais uma alteração ao CT não deve prescindir de incluir os riscos do agravamento da desregulação social (incumprimento do Direito do Trabalho) nos locais de trabalho e das suas consequências económicas (das quais não é despiciendo, com interesse empresarial, o de maior concorrência desleal) e sociais.
Riscos de maior fragilização dos trabalhadores nas relações de trabalho e, associado, além de entre outros, o de maior desregulação social nos locais de trabalho: reminiscências do século XIX?
Notas
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-Sobre-intensificação do trabalho: minutos curtos e meses longos (Abril abril, 29/05/2023) e Futuro do trabalho e qualidade do emprego: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais (Le Monde Diplomatique --Edição Portuguesa -- Agosto de 2019). ↩
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-Condições de trabalho e de habitação: uma relação recíproca (Público, 03/07/2025). ↩
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- Trabalho e consumo: o lado lunar de uma relação recíproca (Público, 23/06/2021). ↩
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- Serviço Nacional de Saúde: o trabalho dá saúde? (Público, 17/11/2018). ↩