
Créditos: Hugo Amaral / ECO
- No passado fim-de-semana, a ministra do Trabalho escreveu no PÚBLICO um artigo em que procura justificar as dezenas de alterações à lei laboral apresentadas pelo Governo. Merece comentário pelo que escolhe dizer, e como, e sobretudo pelo que decide omitir. Ao ponto de precisar de uma espécie de “errata” para não enviesar a leitura do que está de facto em causa.
- Ponto prévio: é importante lembrar que nem o programa eleitoral nem declarações anteriores dos responsáveis políticos permitiam antecipar a dimensão ou até o radicalismo de muitas das alterações entretanto conhecidas. Na anterior legislatura, a ministra afirmou, em várias ocasiões, o objetivo de “revisitar” a Agenda do Trabalho Digno, em vigor há pouco tempo. Mas o anteprojeto apresentado escassos três meses após eleições vai mais longe e recua muito mais no tempo. Mais do que revisitar, elimina muitos dos avanços da Agenda do Trabalho Digno, sem aprofundar nenhum. Revoga também medidas-chave acordadas em concertação há sete anos e que produziram resultados, desde logo, no combate à precariedade. Regressa, pelo contrário, a soluções da altura da troika, há quase década e meia, como na imposição do banco de horas individual ou na desproteção da negociação coletiva. E noutras matérias recua muito mais ao pôr em causa direitos consolidados, como nas famigeradas limitações aos direitos de amamentação, ou na facilitação dos despedimentos. Sob uma capa de alegada contemporaneidade, quase nada nesta autodesignada “reforma” é futuro, mas antes um ajuste de contas com os avanços da última década e uma capitulação perante os novos desafios do trabalho. Em vez de enfrentar os desafios do futuro, que existem!, construindo equilíbrios e reforçando todas as partes, a AD abdica de construir soluções com direitos e, pelo contrário, regressa ao passado para reintroduzir ou vincar desequilíbrios do nosso mercado de trabalho. A “errata” necessária começa por isso aqui: onde a ministra Palma Ramalho escreve “reforma”, deve verdadeiramente ler-se contrarreforma das relações laborais. Ao contrário do que pretende o título do texto escrito pela ministra, não é o século XXI que reclama este trabalho: quem o reclama é a direita – que sempre o reclamou – e aqueles que se conformam com a desregulação, a individualização, a desigualdade e, no fundo, a desvalorização do trabalho como marcas da economia global e do novo mundo digital, ou até as saúdam, por acharem que os direitos e o trabalho digno são “anacrónicos” expressão usada no texto. Entretanto, a realidade desmente esta perceção, fundada no preconceito ideológico: na última década, já bem dentro do século XXI, depois de uma crise brutal e mesmo com uma pandemia pelo meio, com as medidas de reequilíbrio que foram sendo tomadas, o emprego cresceu para máximos históricos de mais de 5,2 milhões, sustentado sobretudo em contratos mais estáveis e em emprego qualificado, cujo peso no emprego é hoje incomparável com 2015. Os números a este respeito são ineludíveis e qualquer debate de políticas públicas deveria partir deles. Mas não. Tal como não falam destes dados e desta transformação, e percebe-se porquê, a AD e o Governo esconderam este programa antes das eleições. E também se percebe porquê. A mesma subtileza seletiva que omitiu do programa eleitoral muitas destas mudanças perpassa todo o artigo de opinião da ministra. Em nome da transparência do que está a ser proposto, estas omissões merecem desocultação – a necessária “errata”.
- Assim, onde se lê “reforçar os direitos dos trabalhadores”, deve ler-se “reduzir os direitos dos trabalhadores”. É assim em muitas das propostas e, para dar apenas um exemplo, nos despedimentos: quando se retiram poderes à ACT e ao Ministério Público em casos de despedimento com flagrante ilegalidade, quando se reduzem as possibilidades de defesa dos trabalhadores nos processos de despedimento, ou ainda quando se quer transformar em regra a não reintegração após decisão judicial de ilicitude do despedimento. Onde se lê “reduzir o período experimental para jovens à procura do primeiro emprego”, deve ler-se “reabrir a possibilidade nefasta de qualquer jovem ser contratado sucessivamente a termo pelo simples facto de nunca ter tido acesso a um contrato estável” – realidade bem conhecida. Onde se lê que “se impõe a revogação da proibição do outsourcing” (após despedimento) por ser “um obstáculo à renovação das empresas”, deve ler-se que o Governo entende que é legítimo abusar do despedimento de trabalhadores alegando que eles não são necessários para logo a seguir os substituir por outros nas mesmas funções, mas com menos direitos e salários. Aliás, onde se lê “crescimento económico sem dumping social” deve ler-se “com mais possibilidades de dumping” – não apenas pela via do outsourcing, mas quando se descriminaliza o trabalho não declarado ou se abre a porta aos contratos de muito curta duração (não escritos) em todos os setores, generalizando os seus riscos. Onde se lê “mecanismos de ajustamento que sirvam, simultaneamente, a eficiência das empresas e a vida pessoal dos trabalhadores” deve ler-se “à custa da vida pessoal” destes – como quando se reintroduz o banco de horas individual, recordando os tempos da troika, ou se remove a proteção dos trabalhadores com filhos até 12 anos de trabalhar ao fim-de-semana ou em trabalho noturno. Onde se lê “clarificar alguns regimes legais e adaptar outros à economia digital” deve ler-se, por exemplo, “dificultar o reconhecimento de contratos de trabalho em plataformas ao ponto de o tornar impraticável”, como têm sublinhado os especialistas, aceitando o dogma de que na economia digital não há lugar para relações laborais dignas. Onde se lê “eliminação de obstáculos à renovação de convenções coletivas” deve ler-se “eliminação de obstáculos à caducidade” destas, removidos da lei para voltar ao modelo de denúncia unilateral dos contratos. Onde se lê “reforçar a voz dos representantes dos trabalhadores” deve ler-se “diminuir a voz”, quando se impede a entrada de sindicatos nas empresas e se dá acrescidos poderes aos empregadores não apenas na caducidade ou no banco de horas, mas até nas portarias de extensão (!). E, onde se lê que a negociação coletiva “ganha espaço e força”, o verbo correto é “perder” – porque este “espaço autónomo de equilíbrio e de construção de solução partilhadas” não se garante desequilibrando ainda mais a balança a favor de um dos lados –, o pecado capital de praticamente toda esta contrarreforma laboral.
- Esta extensa “errata” está longe de esgotar o que deve ser dito sobre o que é omitido ou enviesado na (re)leitura piedosa que o Governo apresenta da sua proposta – o espaço não o permite. A verdade é que há quase 15 anos a direita levou por diante uma agenda radical para pôr em causa direitos, precarizar e desregular as relações laborais a coberto da intervenção externa, da crise e da necessidade de revitalizar a economia e o emprego. Agora oferece exatamente a mesma receita, só que com emprego em máximos e um mercado de trabalho dinâmico e estabilizado que absorveu bem os progressos da última década e que tem sustentado o crescimento da economia e dos salários. É sintomático que no seu texto a ministra comece por tentar fixar o fundamento e a legitimidade da contrarreforma que nos propõe. Porque estes, de tão vincadamente ideológicos, não são compreensíveis nem aceitáveis perante uma proposta tão desfasada da realidade, das necessidades e das prioridades do trabalho, das pessoas e das empresas. Não é este o trabalho que o nosso século reclama.
Artigo originalmente publicado no jornal “Público” de 10 de setembro de 2025