
«Uma presunção legal eficaz exige que o direito nacional torne efetivamente mais fácil para as pessoas que trabalham em plataformas digitais beneficiarem da presunção. Os requisitos da presunção legal não deverão ser onerosos e deverão diminuir as dificuldades que as pessoas que trabalham em plataformas digitais possam ter em apresentar elementos de prova que indiquem a existência de uma relação de trabalho numa situação em que se verifica um desequilíbrio de poder face à plataforma de trabalho digital. O objetivo da presunção legal é resolver e corrigir eficazmente o desequilíbrio de poder entre as pessoas que trabalham em plataformas digitais e as plataformas de trabalho digitais. As modalidades da presunção legal deverão ser definidas pelos Estados-Membros, na medida em que as mesmas assegurem a previsão de uma presunção legal ilidível efetiva de emprego que constitua uma facilitação processual em benefício das pessoas que trabalham em plataformas digitais, e que não tenham por efeito aumentar o ónus dos requisitos para as pessoas que trabalham em plataformas digitais, ou para os seus representantes, em processos que visem determinar o estatuto profissional correto dessas pessoas».
O trecho acima transcrito consta do Considerando n.º 31 da Diretiva UE 2024/2831, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais. E, em boa verdade, Portugal até se antecipou a esta diretiva, visto que, aquando da aprovação da Agenda do Trabalho Digno, foi aditado ao Código do Trabalho um novo artigo, o 12.º-A, que veio a revelar-se em quase total sintonia com a legislação aprovada, ano e meio após, pela União Europeia.
Ora, sabendo-se que a referida Diretiva deve ser transposta para o direito interno de cada um dos Estados Membros até finais de 2026, que propõe agora o governo fazer nesta matéria? Revisitar o art. 12.º-A, limando algumas arestas do mesmo e melhorando a redação da norma, sempre dentro da linha de rumo traçada pela Diretiva?
Pura ilusão! O anteprojeto propõe-se fazer implodir a presunção constante do atual art. 12.º-A, eliminando os factos-base da presunção e remetendo o aplicador para o velho art. 12.º do Código, no qual se consagra uma presunção de laboralidade totalmente desajustada ao trabalho prestado no âmbito das plataformas digitais – porque baseada em fatores tais como a propriedade dos equipamentos e instrumento de trabalho, a sujeição do prestador a um horário ou a um local de trabalho definido pelo beneficiário da atividade, o pagamento periódico de uma quantia certa ao prestador, etc. Tudo, digamos, sinais da dependência própria de uma era pré-digital, nada adequados ao trabalho nas plataformas.
A novidade introduzida pelo anteprojeto consiste então, apenas, em criar um indício adicional de dependência, traduzido na “presença de restrições à autonomia organizativa do prestador”, o qual, por sua vez, decorrerá da ponderação de diversos factos, a saber: determinação dos períodos de trabalho ou dos períodos de ausência pelo beneficiário da atividade; restrições à liberdade de aceitação de tarefas pelo prestador da atividade; limitação do recurso a subcontratados ou substitutos pelo prestador da atividade; escolha dos clientes pelo beneficiário da atividade.
Ou seja, em lugar de a lei fazer aquilo que a Diretiva manda fazer, isto é, enunciar um conjunto de factos que indiciem a direção e o controlo por parte da plataforma digital, o anteprojeto enuncia, em boa medida, justamente o contrário, vale dizer, enumera aquelas características do trabalho para plataformas que evidenciam algumas margens de liberdade operacional para os respetivos trabalhadores e que, por isso, têm sustentado a narrativa das plataformas, no sentido de que estes seriam trabalhadores independentes, quiçá até microempresários – inexistência de horários de trabalho, de controlo das faltas, possibilidade de recusar tarefas ou clientes, etc. Vale dizer, o anteprojeto enuncia um feixe de indícios que, é sabido, apontam para a inexistência de um contrato de trabalho, fazendo o oposto daquilo que consta do atual art. 12.º-A e daquilo que a UE determina.
Não é que faltem indícios que apontariam, verdadeiramente, para a qualificação como contrato de trabalho, correspondendo a uma genuína presunção de laboralidade neste âmbito, na linha do previsto no atual art. 12.º-A. Assim, p. ex., a circunstância de o prestador de atividade não dispor, perante o cliente, de uma organização empresarial própria e autónoma, antes prestar o seu serviço inserido na organização de trabalho da plataforma; ou a de ser a plataforma a fixar os preços para o serviço realizado na mesma e a remuneração devida ao prestador de atividade; ou a de a plataforma levar a cabo um controlo em tempo real da prestação do serviço em causa, sem que o prestador possa realizar a sua tarefa desvinculado da plataforma, designadamente mediante a gestão algorítmica do serviço e através de sistemas de geolocalização constante do prestador; ou a de a plataforma submeter o prestador de atividade a instruções relativas ao modo como se deve comportar ou apresentar, bem como a sistemas de avaliação por parte dos clientes; ou, ainda, a de a plataforma gozar de poderes de sancionar, por várias formas, o prestador que não observe essas instruções ou seja alvo de uma avaliação tida como insatisfatória, inclusive impedindo-o de aceder à aplicação.
Para o anteprojeto, porém, nada disto interessa, tudo isto é silenciado. E, não satisfeito com esta operação de mutilação da presunção de laboralidade, o legislador pretende ir ainda mais longe, determinando que a presunção apenas se aplicará se o prestador de atividade estiver em situação de dependência económica em relação ao beneficiário da mesma, isto é, quando aquele obtiver deste pelo menos 80% do seu rendimento anual. Ou seja, para se aplicar aquele simulacro de presunção legal, o prestador de atividade (o estafeta, p. ex.) terá de trabalhar quase em exclusivo para uma dada plataforma, dela recebendo, no mínimo, 4/5 do seu rendimento anual. Se trabalhar para duas plataformas, de cada uma delas recebendo, aproximadamente, metade do seu rendimento anual, então, na perspetiva do anteprojeto, ele não será trabalhador de qualquer delas!
Estranho. Tanto mais que a existência de um contrato de trabalho não obriga, em regra, à exclusividade, sendo bem conhecidas inúmeras situações de legítimo pluriemprego de trabalhadores assalariados, e sendo também conhecidas as características que predominam no trabalho em plataformas – em que é habitual o prestador de atividade trabalhar para mais do que uma plataforma, fazendo parte da multidão de prestadores gerida pelo algoritmo.
Já se vê em que é que tudo isto vem a redundar: o anteprojeto não cria uma qualquer presunção de laboralidade; o anteprojeto faz, justamente, o contrário, constrói um muro, praticamente intransponível, entre o Direito do Trabalho e os trabalhadores das plataformas digitais. O anteprojeto cria mesmo uma despresunção de laboralidade, situando-se em flagrante rota de colisão com a Diretiva. Fomos pioneiros nesta matéria, arriscamo-nos agora a ser refratários. Tendo em conta o supracitado Considerando 31, isto pode mesmo transformar-se num grande 31...
Publicado originalmente no Público a 23/08/2025.