Créditos: José Soeiro
Créditos: José Soeiro

Uma das normas mais polémicas da Agenda do Trabalho Digno consistiu no novo art. 338.º-A do Código do Trabalho, que proíbe ao empregador a aquisição de serviços externos a entidade terceira para satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador que, nos 12 meses anteriores, tenha sido alvo de despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho. A nova norma foi sujeita a crítica intensa, não faltando quem tenha alegado que ela conteria uma solução excessiva, restringindo inadmissivelmente o âmbito de exercício da liberdade de iniciativa económica privada, enquanto liberdade de gerir a empresa sem interferências externas. Porém, a própria Provedora de Justiça, que suscitou a questão junto do Tribunal Constitucional (TC), logo reconheceu que, à luz da Constituição (CRP), «é claríssimo que a liberdade do empresário nunca inclui a liberdade de despedir». Ora, convém assinalar que o entendimento dominante, neste campo, redundava em reconhecer ao empresário uma latitude, em matéria de decisões de gestão, que habilitava o empregador a tomar a decisão de despedir, mesmo num cenário de normalidade empresarial e com o mero propósito de exponenciar os lucros. Se não se podia falar, em rigor, de um despedimento livre, na prática não estávamos longe disso, visto que, segundo esse entendimento – formado, diga-se, à revelia da jurisprudência constitucional, que sempre considerou inadmissível o despedimento baseado em juízos de mera conveniência da empresa –, a decisão de gestão tomada pelo empresário, a montante (p. ex., a decisão de terceirizar serviços), justificava a decisão de despedimento tomada pelo empregador, a jusante. Confrontado com este estado de coisas, afigura-se curial que o legislador tenha revisitado a matéria, sinalizando que, sem prejuízo da admissibilidade de despedimentos baseados em causas objetivas (isto é, em motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos), nem todas as causas objetivas são suficientemente ponderosas em ordem a legitimar o despedimento dos trabalhadores. Em particular, não o será a decisão gestionária de terceirização de serviços, a qual, a ser implementada, terá de passar por outros caminhos que não o despedimento. Nunca vislumbrei razão para censurar, no plano constitucional, a nova norma – o que, evidentemente, não significa que o seu acerto, no plano técnico-jurídico, não seja duvidoso. E estou mesmo convicto de que, caso o TC decidisse pela inconstitucionalidade da norma, tal significaria o apoucamento da pessoa que há em cada trabalhador, a sua redução ao estatuto de mercadoria facilmente descartável, cujo emprego estaria, afinal, inteiramente nas mãos do seu empregador, concebido este como titular de prerrogativas tais que a simples busca de maximização do lucro, via terceirização, legitimaria o despedimento. O novo art. 338.º-A traduz-se numa norma através da qual o legislador tenta sinalizar que os despedimentos coletivos ou por extinção do posto de trabalho, cuja admissibilidade é indiscutível, devem basear-se em motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos que se revelem suficientemente ponderosos para legitimarem o sacrifício do bem jurídico-constitucional representado pelo emprego, cuja segurança é salvaguardada pelo art. 53.º da CRP. Para a nova lei, despedir alguém para, ato contínuo, utilizar um trabalhador terceirizado em ordem a satisfazer as necessidades antes satisfeitas pelo trabalhador despedido, não é um procedimento admissível. O art. 338.º-A não demoniza a terceirização. A terceirização é uma decisão que o empresário é livre de tomar, à luz da liberdade de empresa, constitucionalmente consagrada. Mas, não representando uma prática ilícita, a verdade é que a terceirização de serviços é um fenómeno malquisto pelo Direito do Trabalho, que cria uma relação a três lá onde, tipicamente, deve existir uma relação a dois. E, quando à terceirização se soma o despedimento, o Direito redobra a sua hostilidade. Creio, por isso, que o TC decidiu bem, ao não declarar a inconstitucionalidade do art. 338.º-A – de resto, numa decisão tomada por larga maioria, 10-3. O Acórdão n.º 555/2025, de 2 de julho, é um aresto em que o tribunal revela firmeza, não cede nos valores prioritários e reafirma a validade e atualidade da axiologia constitucional. Para o TC, o que se pretende vedar ao empregador, com aquele preceito, é o recurso ao despedimento-para-terceirizar, sendo que o enquadramento constitucional da norma não gera dúvidas: pretendeu-se salvaguardar o direito à segurança no emprego, em confronto com o princípio da livre iniciativa económica privada, visto que, segundo a CRP, no campo das relações laborais a liberdade de contratação empresarial tem de ser exercida de maneira a assegurar a valorização do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a justiça social e a segurança de quem vive do trabalho. Ora, a despeito de ter passado com distinção no teste de constitucionalidade, o anteprojeto Trabalho XXI, apresentado pelo governo no final desse mês de julho, prevê a pura e simples eliminação de tal norma. É certo que a constitucionalidade de um preceito não significa que o mesmo seja virtuoso. E é também certo que aquela norma, na sua literalidade, pode ser acusada de ser algo cega, não distinguindo as hipóteses comuns de terceirização daqueloutras, marginais, em que essa decisão poderá revelar-se adequada a responder a situações de grave crise empresarial, salvando a empresa da insolvência e salvaguardando o emprego dos demais trabalhadores. Não me repugnaria, por isso, a sua revogação, contanto que a mesma fosse acompanhada pela criação de uma outra norma que viesse ao encontro das justas preocupações que levaram o legislador a editar o art. 338.º-A. Uma norma que, tal como sugere Catarina Gomes Santos, sublinhe que o empregador pode recorrer ao despedimento coletivo, com base em motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos, mas só desde que tal medida seja indispensável para, prevenindo ou resolvendo situações de crise, assegurar a viabilidade da empresa. Uma norma deste tipo, condicionando a licitude do despedimento à existência de motivos ponderosos que o justifiquem, ligados à salvaguarda da viabilidade da empresa, em lugar de se centrar na terceirização, teria o condão de dar a devida expressão, nesta matéria, à garantia constitucional da segurança no emprego, sem oferecer o flanco às críticas que têm sido movidas ao atual art. 338.º-A. Fica a sugestão. Sendo certo que, se o art. 338.º-A vier a ser revogado, sem mais, aquilo que se insinua será, de novo, a regra não escrita de que qualquer decisão gestionária, mesmo que tomada no âmbito de uma empresa próspera e saudável e visando apenas aumentar a taxa de lucro dos seus titulares, bastará para legitimar o despedimento. Coisa, a meu ver, inadmissível e contrária ao quadro de valores acolhido pela CRP. Será isso que se pretende?