
O governo apresentou no verão o pacote laboral Trabalho XXI, uma proposta que pretende reduzir direitos laborais em Portugal. Sob a ameaça de uma greve geral, o governo fez recentemente alguns recuos. Estes recuos não são suficientes e a proposta deve cair.
As leis laborais são uma ferramenta fundamental para garantir direitos básicos dos trabalhadores, como salários dignos e condições de trabalho seguras. Estas leis protegem a dignidade no trabalho, aumentam os salários dos trabalhadores mais vulneráveis, promovem a igualdade étnico-racial e de género e reequilibram a relação de poder entre trabalhador e empregador.
Apesar disso, o governo pretende reduzir fortemente a proteção laboral em Portugal. Fá-lo com base numa ideia caricata: a de que retirar-nos direitos faz-nos ser mais produtivos. Procurei quem tivesse feito prova de tal curiosidade, mas não encontrei. Encontrei, no entanto, vários motivos para recusarmos a proposta do governo. Deixo aqui cinco.
1. Pagamento de Horas Extraordinárias: O pacote laboral proposto pelo governo prevê que empregadores estipulem até 150 horas extraordinárias por ano através de um banco de horas individual, que não necessita de acordo expresso do trabalhador. Atualmente, face ao salário-hora normal, as horas extraordinárias são pagas com 25% a mais na primeira hora, 37.5% a mais nas subsequentes e 50% por cada hora em dias de descanso. Estes acréscimos duplicam a partir das 100 horas extra anuais. Estas regras aplicam-se sempre que o trabalhador não esteja sob um banco de horas coletivo que estabeleça outras regras. Com o banco de horas individual proposto pelo governo, as horas extra poderiam ser devolvidas em descanso ou pagas pelo valor normal da hora - sem qualquer acréscimo. Para um trabalhador que receba o salário médio, esta medida poderia implicar uma perda de até €930 ao fim do ano[1].
2. Horários Longos: Este banco de horas prevê também que o trabalho se possa estender até às 10 horas por dia e 50 horas semanais durante três meses e meio por ano. Se aprovada, os efeitos desta medida nos trabalhadores são expectáveis: A ciência documenta robustamente a associação entre horários longos e stress, fadiga, distúrbios do sono, doenças cardiovasculares e redução de produtividade por acidentes de trabalho. Mas as oito horas de trabalho diário são uma bandeira dos direitos laborais não apenas para nos proteger destes riscos, mas também porque uma vida justa exige oito horas para trabalhar, oito para dormir e oito para viver. Um direito reconhecido internacionalmente em documentos como o Tratado de Versalhes, a Convenção Fundadora da Organização Internacional do Trabalho e a Diretiva Europeia do Tempo de Trabalho.
3. Horários Instáveis: A proposta inicial introduzia instabilidade horária de duas formas. Primeiro, o governo pretendia retirar aos trabalhadores com filhos menores de 12 anos o direito a recusar trabalho noturno ou aos fins de semana, contrariando o espírito da Diretiva Europeia de Conciliação da Vida Profissional e Familiar de 2019 que reforçou estas proteções. Apesar do governo ter recuado neste ponto, a revisão da proposta mantém uma segunda fonte de instabilidade: prevê que empregadores possam alterar os horários com apenas três dias de antecedência, por meio do banco de horas individual. Também a instabilidade horária está associada a problemas de saúde mental, distúrbios do sono e infelicidade. Além de fazer mal à saúde, esta medida é anacrónica. Tecnologias como a gestão algorítmica do trabalho têm exacerbado a instabilidade horária. Por isso, países como a Bélgica e várias cidades e estados nos Estados Unidos têm aprovado leis que restringem fortemente a alteração de horários com menos de uma semana de antecedência. Em contramão, o governo português propõe horários instáveis.
4. Trabalho em Plataformas: Empresas como Uber e Glovo transformaram emprego com direitos em trabalho sem proteções fundamentais (salários mínimos, segurança social, direito a férias, etc). Em muitos países tem-se procurado modernizar as leis laborais para devolver direitos fundamentais a estes trabalhadores - exemplos disso são a Lei Rider espanhola de 2021, as alterações ao Código do Trabalho português de 2023 e a Diretiva Europeia de 2024. A proposta do governo esvazia a lei de 2023, contribuindo, na prática, para que estes trabalhadores regressem a um passado sem direitos.
5. Poder de Retaliação Patronal: Para que a lei laboral funcione, é fundamental que os e as trabalhadoras possam denunciar violações sem medo de represálias. Num estudo recente concluí que os trabalhadores norte-americanos da restauração e do retalho raramente se queixam de violações de direitos laborais por receio de retaliação. Com maior ou menor intensidade, o mesmo acontecerá em Portugal. A proposta do governo agravaria este problema. Por um lado, com o alargamento dos contratos a termo, reposição do banco de horas individual e facilitação do outsourcing após despedimento colectivo, a proposta reduziria de forma generalizada o poder dos trabalhadores na relação laboral. Por outro lado, a proposta dificultaria a reintegração de trabalhadores despedidos indevidamente. Despedidos, por exemplo, como retaliação por se queixarem à Autoridade para as Condições do Trabalho. Ao reduzir o poder de queixa dos trabalhadores e aumentar o poder de retaliação dos empregadores, a proposta do governo desencorajaria denúncias, enfraquecendo o sistema de fiscalização laboral. Este pacote não só eliminaria direitos, como tornaria mais difícil fazer cumprir os que restam.
Esta proposta de reforma laboral é, portanto, um retrocesso. Ainda bem que dificilmente avançará: conseguiu unir UGT e CGTP na convocação de uma greve geral conjunta e deixou o governo isolado, até dentro do próprio PSD. O governo deve deixá-la cair.
Artigo originalmente publicado no jornal Expresso de 3 de dezembro de 2025