Créditos: José Soeiro
Créditos: José Soeiro

- "Independentemente do impacto económico, eu gostava de referir o impacto social que todas as greves têm… a greve é um instituto danoso, quero dizer, tem um efeito danoso";

- "A geração mais jovem valoriza menos a estabilidade…".

Estas duas frases são excertos de declarações da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, (MTSS),numa entrevista televisiva (RTP1, 26/11/2025) a propósito do projecto do Governo sobre alterações à legislação laboral[1].

Desde há algumas semanas que este assunto tem dominado o debate mediático e político-partidário, se bem que só com algum aprofundamento sobre conteúdo desse diploma a partir do anúncio, em 08/11/2025, pela CGTP e UGT, de marcação de uma greve geral (11/12/2025) de contestação a esse projecto.

Aliás, mesmo desde então esse debate tem-se confinado muito apenas na greve em si e quase só como mote de análise da correlação de forças político-partidárias, que não nas suas consequências concretas para as relações e condições de trabalho

De qualquer modo, uma característica que, entre outras, é em geral reconhecida como mais definidora deste projecto legislativo, é o alargamento e agravamento da precariedade.

A precariedade laboral é um conceito que não está definido na Lei mas que, de facto, se consubstancia na incerteza e insegurança (e, daí, fragilização) dos trabalhadores nas relações de emprego e, por estas, nas relações e condições de trabalho propriamente dito.

No sentido mais estrito e visível na letra do diploma, o agravamento da precariedade está, desde logo, nas alterações que visa introduzir nas condições de contratação de trabalhadores nos regimes de contrato de trabalho a termo.

Ao ponto de, sendo este um regime de contrato de trabalho de excepção (ainda que legal, se com certos fundamentos e limitações) ao princípio constitucional (Artº 53º da CRP) de segurança no emprego, com estas alterações legislativas projectadas, em certas circunstâncias (e opções gestionário-patronais), este princípio constitucional poder ser subvertido de regra em excepção e, por exemplo, com a conivência da Lei, "um trabalhador contratado aos 20 anos, através de um contrato a prazo, poder terminar a sua carreira (?) já sexagenário, tendo sido sempre e só contratado a prazo, por uma ou duas dúzias de empregadores, ao longo de décadas"[2].

Mas as disposições do Código do Trabalho que tornam mais precárias (mais inseguras e incertas) aos trabalhadores as relações com os empregadores não se restringem às que, como condições de emprego, incidem no vínculo laboral.

São também as que, sob o "manto diáfano" da "flexibilidade" (de facto, estratégias de precarização), respeitam a outros domínios da relação e condições de trabalho propriamente ditas e não "apenas" à relação de emprego (contrato de trabalho) com vínculo precário, se bem que da natureza insegura e incerta desta relação sejam não apenas indissociáveis mas, mesmo, suporte.

Como é o caso, por exemplo (não exaustivo), das inerentes a organização e duração dos tempos de trabalho, local de trabalho, qualificação profissional e funções objecto do contrato, garantia de não diminuição da retribuição, teletrabalho, trabalho em plataformas electrónicas, (des)caracterização do contrato de trabalho como contrato de prestação de serviços (e consequente exclusão dos direitos conferidos pelo contrato de trabalho), controle de trabalho não declarado ou subdeclarado (nomeadamente nas contribuições para a segurança Social), regimes de despedimento individual e colectivo, actividade sindical.

De qualquer modo, a análise do diploma (deste ou de qualquer outro) apenas pela óptica jurídica reduz-se à abstracção que é requisito das normas legais, não permitindo, por si, reparar nas suas consequências concretas nas relações e condições de trabalho nos locais de trabalho, tanto estas têm sido, na sua (in)visibilidade e (não) debate -reflexão pública e política, uma "caixa negra".

Quem trabalha ou quem acompanha ou acompanhou de perto e continuadamente o que se passa nos locais e situações de trabalho[3], sabe bem que algo que ali tem implicações na organização do trabalho e nas condições (o quê, com quê, como, onde, com quem, quando, quanto,…) em que os trabalhadores o realizam é, desde logo, a natureza do vínculo contratual laboral, as condições de com ou sem segurança no emprego das relações que os trabalhadores têm com os empregadores,

De facto, nos locais de trabalho em que nas relações de emprego prepondera a precariedade, não é difícil perceber no ambiente socio-laboral, por parte dos trabalhadores, um sentimento de ameaça, se não de medo, da possível cessação (denúncia) mais ou menos breve do contrato de trabalho, a qual, ainda que de grau subjectivo em cada trabalhador, é objectivada na própria designação e definição ("a termo" ou "temporário") do contrato de trabalho.

Depois, algo que é característica também menos visível da precariedade das relações de emprego é a sua projecção socio-laboral como factor de generalização nos locais de trabalho desse sentimento de incerteza e insegurança, de fragilidade nas relações e condições de trabalho propriamente dito é o facto de, como alguém escreveu, "a insegurança objectiva ser a base de uma insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia altamente desenvolvida, o conjunto dos trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou ainda não foram directamente atingidos"[4].

Daí resulta, de forma mais ou menos acentuada mas clara:

- Inibição de filiação sindical e, em geral, de participação nas organizações colectivas de trabalhadores, quer ao nível do local de trabalho, quer para além dele, tanto mais que este projecto legislativo, objectivamente, descredibiliza os sindicatos ao dificultar a actividade sindical nos locais de trabalho e manter entraves à negociação-contratação colectiva de trabalho (como é o caso da caducidade das convenções colectivas de trabalho);

- Sujeição a sobre-intensificação do trabalho, em ritmo, bem como em duração e organização dos tempos de trabalho, eventualmente, com a realização de trabalho suplementar não declarado e não devidamente remunerado;

- "Aceitação", sem recusa de cumprimento (legítima como direito - se não mesmo obrigação - legal) de atribuição de tarefas insalubres, penosas ou perigosas com riscos emergentes não devidamente prevenidos para a saúde, integridade física ou mesmo para a vida e, logo, de doença profissional ou de acidentes de trabalho;

- Falta de denúncia e de reacção suficiente e em devido tempo a situações associadas ao trabalho atentatórias da dignidade das pessoas, de assédio moral, de violência psicológica e mesmo física, com negação ou escamoteamento do inerente sofrimento físico ou mental, quer próprio, quer de colegas de trabalho, comprovando que "uma das consequências da precariedade laboral é a negação do sofrimento dos outros e o silêncio sobre o seu próprio sofrimento"[5].

Uma outra faceta da precariedade do / no emprego é o facto de os trabalhadores nessa condição, ao assim se "sujeitarem" (serem sujeitos) a salários mais baixos e condições de trabalho mais degradadas poderem servir, como não raro servem, de instrumento gestionário de nivelamento ("por baixo") das condições de trabalho de todos trabalhadores na organização empregadora em causa, passando assim a serem vítimas da precariedade laboral os trabalhadores "precários"... e os trabalhadores "efectivos", (com vínculo laboral permanente, sem termo).

Acresce que uma das consequências, ainda que indirecta, da precariedade do emprego é a da desqualificação (ou, pelo "menos", a não progressão na qualificação) profissional, visto que da contratação de trabalhadores a termo ou em trabalho temporário, em regra, na sequência errática de organização empregadora em organização empregadora, não é tanto a profissão e qualificação que mais interessa desenvolver mas a tarefa temporária que é preciso "despachar".

Se no domínio do emprego, sob o ponto de vista ponto de vista individual, das implicações para a (não) empregabilidade, o que precede é relevante, do ponto de vista geral, uma vertente da precariedade menos evidente mas que carece de ser social, económica e politicamente muito tida em conta é a de que, se por um lado tem havido um aumento consolidado do emprego com diminuição do desemprego, por outro, há uma reconfiguração das relações de trabalho no sentido da sua individualização, precarização e sobre-intensificação, implicando a diminuição da qualidade do emprego e do trabalho com a sua degeneração em subemprego e sobre-trabalho.

Enfim, para o bem ou para o mal, não sendo uma mercadoria[6] mas consubstanciando-se nas pessoas que trabalham, é o trabalho que faz ou desfaz as pessoas, na medida em que o trabalho, nas condições que o realizam, é para as pessoas: a realização ou a frustração, a participação ou a marginalização, a qualificação ou a desqualificação, o (auto)reconhecimento e responsabilização profissional ou a alienação, a inclusão ou a exclusão, a saúde ou a doença, a integridade física ou o estropiamento, a vida ou a morte.

E isso depende - sublinha-se - das condições em que o realizam, quanto às quais, como precede, a precariedade não é inócua, bem pelo contrário.

Mas, para além do local de trabalho ("o trabalho tem um braço longo"), o trabalho é central na vida de cada um e na sociedade. Para o bem ou para o mal, o trabalho projecta-se na (des)estruturação e na (des)organização familiar (por exemplo, na natalidade[7]), nas condições de habitação[8], nas condições de saúde[9], na vida em geral de quem trabalha e, por esta, na sociedade. Sendo que todas estas repercussões do trabalho na vida de cada um e na sociedade, reciprocamente, se vão retroprojectar no trabalho nos locais de trabalho ("levamos" o trabalho para casa - muitas vezes mesmo literalmente - e "trazemos" a casa para o trabalho) e, daí, no funcionamento das organizações empregadoras, na Economia.

Assim, estão associados ao trabalho valores humanos e sociais fundamentais, intrínsecos das pessoas como tal e daí condicionantes e estruturantes da sociedade: a vida, a integridade física, a saúde, a família, a inserção e integração social, a cidadania, a economia.

Valores socialmente relevantes, quanto aos quais, do que antecede e não só, a precariedade laboral, por via directa ou indirecta, tem um "impacto danoso".

Nas declarações citadas, ainda que coerentes com a autoria (como membro do Governo) deste projecto legislativo, ao valorizar o "impacto social danoso" da greve que contesta esse projecto e ao desvalorizar a segurança (a "estabilidade", o contrário da precariedade) do emprego (e por este a do e no trabalho), a Ministra do Trabalho traz-nos à memória algo que é atribuído a Bertolt Brecht:

"Do rio, que tudo arrasta, todos dizem que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem".

Inspector do trabalho aposentado.