
Os dados estatísticos oficiais sobre greves em Portugal são de má qualidade e não são confiáveis. O poder político tortura os números e a realidade.
Não há nenhum sistema consistente e rigoroso de recolha e tratamento estatístico global dos dados dos conflitos laborais em Portugal. E o Relatório Único (RU) anual entregue pelos empregadores ao Ministério do Trabalho, sendo o mais importante retrato das relações laborais nas empresas, não é normalmente validado pelas organizações de trabalhadores, que são ignoradas no processo da sua elaboração e a quem é frequentemente recusado o acesso ou fornecida apenas informação truncada e parcial. Também continua a não existir a obrigação de elaboração de RU pelas organizações e serviços do Estado. A generalização do sistema de RU a todas as unidades, públicas e privadas, e a inclusão das organizações de trabalhadores no processo da sua elaboração, certamente elevaria a qualidade das estatísticas laborais em Portugal e dificultaria a sua instrumentalização.
Quanto ao sector privado e empresas públicas (que também preenchem RU), os dados disponíveis são fornecidos nos relatórios anuais sobre greves do GEP/MTSSS. Assentam no tratamento conjugado da informação dos pré-avisos de greve (DGERT) e dos dados fornecidos pelos empregadores no Relatório Único anual (Anexo E - Greves), não tendo nem representatividade nem fiabilidade, nem sendo objecto de consulta e parecer pelas organizações sindicais. Basta ver os números de trabalhadores aderentes nas estatísticas de greve anuais para concluir que não são representativos da realidade. Quando muito, servem para indicar tendências de aumento ou diminuição de conflitualidade, não para aferir a real adesão dos trabalhadores aos processos grevistas. Por exemplo: o crescimento do número de trabalhadores em greve registados, apesar de abaixo da realidade, tem aumentado com este governo da AD: 2021 - 29057; 2022 - 41572; 2023 - 61254; 2024 - 65974 (mais do dobro de 2021).
Quanto à Administração Pública, os dados são tratados nos relatórios da DGAEP sobre greves da administração pública. Assentam na recolha, nos dias seguintes às greves, dos dados fornecidos pelos serviços. Baseiam-se na relação entre trabalhadores que declaram a adesão à greve e o total de trabalhadores em cada unidade que poderiam fazer greve, descontando assim os que estão ausentes do serviço e não são considerados para o cálculo da adesão à greve no dia.
No sector privado como no Estado, e não sendo sequer os trabalhadores cobertos pelos pré-avisos de greve obrigados a comunicar expressamente a adesão à greve, a participação dos trabalhadores nos processos de greve, dada a repressão e falta de liberdade em muitos locais de trabalho, conduz também a que muitos trabalhadores, a par dos que exercem formalmente o direito de greve, o façam recorrendo a outras formas de justificação de faltas.
O caso dos dados da greve geral conjunta de 27 de Junho de 2013
Quanto aos dados anuais das greves fornecidos pelo GEP/MTSSS, o que antes é dito é bem ilustrado pelos dados fornecidos pelos relatórios oficiais quanto às greves em 2013, no tempo da troika e do Governo AD de Passos Coelho e Portas.
No caso do sector privado e empresas públicas, o número registado de trabalhadores em greve, em todo o ano de 2013, ou seja, incluindo as greves de empresa, sectoriais e a greve geral conjunta de 27/06/2013, foi de 70 405, com um total de 77 148 dias de trabalho perdidos. Isto num ano, 2013, em que segundo o relatório anual da DGERT foram registados 1 534 pré-avisos de greve.
Ou seja, 70 405 trabalhadores grevistas, somando todas as greves do ano mais uma greve geral, e havendo 1534 pré-avisos de greve?
Estes dados mostram bem o irrealismo e a falta de credibilidade dos dados apresentados!
No que respeita aos trabalhadores da administração pública, os dados recolhidos através das chefias dos serviços indicaram uma adesão de 20,5% dos trabalhadores, ou seja 63 536 grevistas para um universo de 309 961 trabalhadores das entidades respondentes ao inquérito que constituíam o universo dos que poderiam fazer greve. Importa aqui anotar que o número de trabalhadores das entidades respondentes era de 403 129, quase mais uma centena de milhar, o que significa que haveria muitos trabalhadores ausentes nesse dia por motivos diversos e não contabilizados como grevistas declarados. Importa ainda lembrar que o número de trabalhadores da administração pública era de 674 896 em Dezembro desse ano[1]. O que significa que o universo em que fundamentaram a análise era de 59,7 % do total de trabalhadores.
As declarações e informações da CGTP e da UGT sobre a adesão dos trabalhadores à greve geral de 2013 vindos a público foram mais prudentes e cuidadosas na apresentação de números globais, mas adiantaram substancial informação de empresas, serviços, locais de trabalho concretos onde a paralisação foi elevada ou significativa em todo o país, demonstrando que a greve geral teve certamente adesões variáveis, mais expressiva nas empresas públicas e na administração pública, mais sofrida e difícil no sector privado, embora também com grande adesão em numerosas empresas. Tudo isto somado à realidade com que os cidadãos se confrontaram no acesso a serviços públicos, transportes e empresas, dá certamente uma dimensão a esta greve geral significativamente superior à que resulta das estatísticas e interpretações oficiais.
A levar a sério tais estatísticas, a participação dos trabalhadores na greve geral de 13 de Junho de 2013 dificilmente teria atingido os 100 000 trabalhadores, estimando uma atribuição generosa de cerca de metade dos 70 000 registados em todas as greves nesse ano no sector privado e empresas públicas, e somando os 63 000 grevistas registados na administração pública. Ou seja, teria havido uma adesão à greve geral de 2,89% dos trabalhadores por conta de outrem existentes à época em Portugal (3 456 700). O que desafia evidentemente a realidade concreta e os testemunhos vividos desta greve geral.
Em conclusão:
Como aqui se procurou demonstrar, com dados, a realidade não casa com as estatísticas oficiais existentes sobre greves, e concretamente sobre a última greve geral conjunta da CGTP-IN e da UGT em 2013, que aqui nos serviu de exemplo.
Certamente teremos de novo uma guerra de números, com este Governo a clamar pelo fracasso de uma greve geral que do alto da sua arrogância considerou "incompreensível", como se o que está em causa não fosse eminentemente político: a oposição dos trabalhadores a uma reforma das leis laborais que é uma iniciativa política deste Governo, que não é justificada pela situação do país e cuja negociação se arrasta há quase cinco meses.
Escolhamos pois a realidade em vez da tortura dos números pelos governos!
Quanto à greve geral, com a adesão confirmada de praticamente todos os sindicatos, filiados e não filiados nas duas confederações sindicais, já é incontornável como um sinal muito forte da rejeição desta reforma laboral e como um aviso do crescimento futuro da conflitualidade social se aquela for imposta, para lá da guerra dos números e dos dados e do seu confronto com a realidade efectiva dos trabalhadores que decidem sacrificar o dia de salário fazer a greve.
Recusando embarcar na manipulação instrumental de estatísticas nada rigorosas, aproveitemos para exigir que se construa um sistema mais confiável de informação sobre conflitos e relações laborais em Portugal, com a participação efectiva das organizações de trabalhadores. Certamente não eliminaria as diferentes e contraditórias leituras políticas das greves. Mas ajudaria na construção de relações colectivas de trabalho mais saudáveis.
Publicado originalmente no jornal Expresso de 9 de Dezembro de 2025