
A discussão sobre a revisão da legislação laboral regressa sempre com os mesmos argumentos: flexibilizar para criar emprego, adaptar as regras aos novos tempos, reduzir "custos de contexto". Por detrás destas palavras suaves, esconde-se quase sempre uma tentativa de enfraquecer a negociação colectiva. Isto não é apenas uma má ideia do ponto de vista da justiça social. É também uma estratégia que empurra o país na direcção errada em termos económicos.
A negociação colectiva é um processo em que sindicatos e associações patronais negoceiam regras aplicáveis a um dado sector: níveis salariais, progressões, categorias profissionais, tempos e condições de trabalho, complementos e direitos básicos. É uma forma de estabelecer padrões comuns a um conjunto de empresas que operam em mercados semelhantes.
A negociação colectiva não existe por acaso. Existe porque os mercados de trabalho não são espaços de igualdade. Os empregadores têm mais informação, mais margem de manobra, maior capacidade de assumir períodos de espera, mais recursos para lidar com conflitos. Os trabalhadores, individualmente, não têm nada disso. A negociação colectiva surge, portanto, como um mecanismo de correcção desta assimetria: permite que quem vende a sua força de trabalho negoceie em condições menos desiguais com quem paga por ela.
Outro motivo, que todos reconhecem de uma forma ou outra, é que a contratação colectiva reduz a conflitualidade social. Ao criar regras previsíveis e canais institucionais de diálogo entre sindicatos e associações patronais, evita-se que cada disputa se transforme numa guerra aberta. Países com sistemas fortes de negociação colectiva têm menos greves, não mais. A estabilidade não nasce do medo. Nasce de regras claras e do reconhecimento mútuo.
Mas há ainda um argumento frequentemente esquecido no debate português: a negociação colectiva limita a concorrência desleal entre empresas. Quando o sector define pisos salariais e normas básicas, evita-se que a sobrevivência de algumas empresas dependa exclusivamente da prática de salários reduzidos ao mínimo ou de condições indignas. Quem investe em organização, tecnologia ou qualificação não tem de concorrer com quem vive à custa do sacrifício dos trabalhadores. Quando aquelas bases negociadas desaparecem, instala-se a corrida para baixo - uma corrida onde todos perdem, excepto os que prosperam através de trabalho mal pago e com regras mínimas.
A partir destas bases institucionais emergem efeitos económicos conhecidos e bem documentados. O mais óbvio é a redução das desigualdades: quando os trabalhadores têm capacidade de negociar colectivamente, os salários tornam-se menos dispersos e a fatia do rendimento que vai para o factor trabalho tende a ser maior. É isto que mostram, entre outros, estudos publicados pelo insuspeito FMI (ver, por exemplo: Jaumotte, M. F., & Osorio, M. C. (2015), "Inequality and labor market institutions", IMF Staff Discussion Note, International Monetary Fund). Sistemas robustos de negociação colectiva estão associados a menores níveis de desigualdade antes das transferências do Estado. Ou seja, não substituem políticas redistributivas, mas impedem que a desigualdade se torne estrutural logo à partida.
Outro efeito, menos falado, é o de estabilização do ciclo económico. Sectores com contratação colectiva tendem a ajustar salários e condições de forma mais previsível e coordenada. Isso reduz flutuações abruptas na procura, ajuda a evitar espirais recessivas e facilita a planificação das empresas. Não é coincidência que economias com sindicatos fortes tenham historicamente exibido maior resiliência - e não menor - face a choques externos.
Mas o ponto mais relevante para o debate actual é outro: a negociação colectiva é também uma política de desenvolvimento económico. Funciona como uma espécie de política industrial de base institucional.
Economias que pretendem mover-se para actividades de maior valor acrescentado enfrentam um problema central: como impedir que empresas pouco produtivas sobrevivam apenas graças a salários baixos? Sem resposta a esta pergunta, a estrutura produtiva fica presa num padrão de especialização pobre, onde a competitividade depende exclusivamente do custo da mão-de-obra.
A negociação colectiva ajuda a resolver este problema de três formas.
Primeiro, estabelece pisos salariais que encurtam o espaço para modelos de negócio baseados em exploração laboral. Empresas que só são competitivas porque pagam mal perdem margem. As mais produtivas, que investem em tecnologia, organização e qualificação, ganham espaço. O resultado não é um choque súbito, mas um processo gradual de selecção positiva.
Segundo, a contratação colectiva altera os incentivos empresariais. Quando não é possível competir à custa de salários baixos, a competição desloca-se para a inovação, a eficiência, o investimento em processos e em capital humano. É assim que sectores avançados emergem: as instituições empurram as empresas para estratégias de produtividade, não de compressão salarial.
Terceiro, a negociação colectiva favorece uma relação laboral estável, essencial para actividades intensivas em conhecimento. Empresas que precisam de trabalhadores qualificados beneficiam de ambientes previsíveis: menor rotatividade, mais confiança, mais investimento das empresas e dos trabalhadores na aquisição de competências específicas, mais capacidade de planear a longo prazo. Isto é parte integrante da competitividade nos sectores mais avançados.
Finalmente, a contratação colectiva cria coordenação sectorial. Facilita a definição de carreiras, perfis profissionais, sistemas de certificação e investimentos conjuntos em formação. Sem esta coordenação, como já vimos, cada empresa é deixada à sua sorte, o que tende a penalizar precisamente as que apostam na qualidade.
Tudo isto ajuda a perceber por que razão várias das economias mais avançadas do mundo tendem a combinar inovação tecnológica com negociação colectiva robusta. Não é romantismo, é simples racionalidade económica.
À luz disto, a tentativa de enfraquecer a negociação colectiva - facilitando a caducidade dos acordos em vigor, enfraquecendo os sindicatos ou dificultando o seu acesso a empresas onde ainda não têm presença, como prevê a proposta de reforma laboral do governo - não é apenas um erro na perspectiva da justiça e da paz social. É uma escolha que contribui para manter o país preso numa estrutura produtiva frágil, incapaz de dar o salto para actividades mais sofisticadas. É uma escolha que custa caro - não apenas aos trabalhadores, mas ao futuro económico do país.
Originalmente publicado no Jornal Público a 9 de Dezembro de 2025